segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Escrevivendo seres imaginários



ESCREVIVENDO SERES IMAGINÁRIOS
INTRODUÇÃO

Gilson Charles dos Santos & Karen Kipnis


“Quem buscava uma fórmula infalível pode estar se sentindo frustrado ou atordoado. Mas...se você se empenhou verdadeiramente, houve muito crescimento... É preciso lembrar que o trabalho com a leitura e a escrita é ininterrupto, vai continuar pela vida a fora. O que significa que você continuará crescendo sempre” (GARCEZ, Lucília H. do Carmo. Técnica de redação, 2005).

“Sob o caos das aparências, entre as durações e os lugares, na ilusão das coisas que se engendram e se concebem, um entre outros, um como outros, distinto dos outros, semelhante aos outros, um mesmo e um a mais, do infinito de possíveis existências, surjo...” (DUJARDIN, Édouard. A canção dos loureiros, 1887).

“Estes animais, eu os convido, era uma vez” (BUENO, Wilson. Os Chuvosos).


Em maior ou menor grau, em todo texto transparece uma realidade vivida ou sentida por um autor - através de elementos menos complexos, como a elaboração lingüística, e mesmo dos mais complexos, como o plano do conteúdo, em sua rede lógico-semântica. Neste horizonte, não se pode ler todos os contos que se apresentam a seguir apenas como histórias nonsense. São composições em que se somam a fantasia crítica, as hipóteses alegóricas, as reverberações de metáforas e os espelhos possíveis da ciência. Nelas, predomina uma realidade exorcizada pelo sonho e pelo devaneio, para a qual o real e o fantástico (re)criam-se mutuamente num pólo oposto à descrição objetiva dos fenômenos, cujo acento restringe as possibilidades de se penetrar no inexplicável.
O universo simbólico comparece aqui como elemento fundador da escrita, e parte do princípio de que os fenênomos vão muito além da factualidade a que estamos acostumados na narrativa realista. Ele formula e rege-se por leis próprias, mantendo, porém, um tipo de ordem análoga ao cíclo biológico, com o qual ora concorda ora subverte. Origina formas novas de personagens, ritmos diferentes nos encontros e relacionamentos, contradições propositais entre as noções de espaço, tempo e dimensão. Simplifica as relações, encerrando-as na chave do amor, da amizade ou da rivalidade.
Apesar de nem todos os contos serem nonsense, eles lidam com um sistema articulado num jogo, cujo material são as palavras . O nonsense, “sistema fecundo na descrição de um processo” dá conta de experiências inscritas no espectro da ordem e da logicidade interna a seus elementos, que parecem absurdos apenas na sua superfície. Mas esta lógica deve ser percebida e interpretada pelo leitor, no seu incansável papel de questionador do que existe por trás das palavras. Tamanha é a logicidade do nonsense, que as palavras utilizadas nos textos, em geral, seguem de perto o significado registrado no dicionário e não traduzem conceitos muito diferentes daqueles que circulam na descrição da realidade. Elas não rompem o discurso social nem fundam, ao menos conscientemente, um “discurso disjunto”.
Já dizia Paul Valéry que o poeta é reconhecido por transformar seu leitor num “inspirado”; dizemos que o escritor prosaico também inspira seu leitor, e que ainda o familiariza com suas idéias, torna-o aderente a seu discurso e estabelece com ele um pacto de (re)conhecimento do mundo. Para tanto, ele transforma as coisas de modo a oferecer delas a sua máxima expressão . Não por acaso, o primeiro depoimento sobre a escrita “literária”, a Poética de Aristóteles, relaciona à atividade do poeta, e, em contigüidade, à do escritor, a imitação de ações melhores ou piores, não iguais às reais. Porque, se assim o fizesse, o escritor incorreria na cópia - mera cópia - da realidade, condenando assim a escrita a extingüir-se por carência de encanto, quando não reduzindo-a a um recurso utilitário. Ele sugere, e sua sugestão torna o pensamento livre para a subversão:

“Agora, por um momento, vamos brincar com a imaginação. Na imaginação o pensamento é onipotente e tudo é possível. Pois vamos imaginar o impossível! Um pesadelo: um estranho jantar, absurdo puro, todas as regras da realidade viradas de cabeça para baixo! As lagostas estão vivas, e também os peixes, os camarões, as ostras, as aves... Juntamente com os vegetais, todos têm facas e garfos em suas mãos, prontos para começar a comer. A anfitriã, uma gorda cebola, pede que a criada traga a entrada. E lá estamos nós, saídos do forno, servidos numa travessa de prata, prontos a ser comidos. E no momento preciso, quando a lagosta está no ponto de agarrar o nosso nariz com suas tenazes, acordamos aterrorizados...”
Na libertação da imaginação, os contos privilegiam o simbolismo, aqui referido como estética, cujo projeto é “revestir as idéias de uma forma sensível, isto é, traduzi-las para uma linguagem simbólica” reconhecendo, porém, que “atrás da ordem aparente das coisas estão o caos, a névoa, a bruma, a neblina, o incorpóreo, o fantasmagórico, o estranho, o inefável” . É uma estética que limita o conhecimento “positivo” oferecido pela ciência, acreditando “que, assim como a ciência é limitada, igualmente a linguagem não pode pretender representar a realidade como ela de fato é. Pode-se, no máximo, sugeri-la” .
Os contos têm em comum a composição de bestiários , que tanto servem como fábulas ou alegorias das diversas situações do cotidiano de seus autores, como exercícios de aprendizagem e contato com a escrita, vinculando-se ao prazer de escrever e à necessidade de expressar-se bem. Os contos são exercícios literários pensados na tradição da narrativa fantástica, representada especialmente pelo Livro dos Seres
Imaginários, de Jorge Luis Borges, no qual o autor revela, além de muita erudição, grande interesse pelo folclore, pelo mítico, pelo metafísico e místico. Apoiados na reflexão motivadora do que seria a lenda, o mito e o folclore, os contistas aqui reunidos partiram para o papel.
Na oficina de escrita Escrevivendo, pretendeu-se, através da leitura de textos como, por exemplo, o nonsense Jaguadarte (traduzido de Lewis Carroll por Augusto de Campos) e alguns dos seres do Livro de Borges, acima mencionado, evocar uma floresta de símbolos com seus sabores, perfumes, silêncios e vozes, através das experiências de cada participante.
Como resultado, apresenta-se esta antologia, que é também uma moderna versão dos tradicionais bestiários medievais, a respeito dos quais tratou a palestra do poeta, tradutor e ensaísta Claudio Daniel, autor dos livros A Sombra do Leopardo (poesia, 2001) e Romanceiro de Dona Virgo (contos, 2004), entre outros títulos. Em sua visita, ele apresentou o bestiário de Wilson Bueno.
Primeiramente, Claudio falou sobre o livro Jardim Zoológico, de 1999. Segundo ele,

“Podemos considerar este livro de Wilson Bueno como um insólito conjunto de fábulas, mas também como um moderno bestiário. Segundo nos informam os dicionários, bestiário (do latim bestiariu) é um livro com descrições e histórias de animais, reais ou imaginários, geralmente com ilustrações. O gênero, popular na Idade Média, pertence a uma longa tradição da zoologia fantástica, que começa talvez com os relatos mitológicos e avança na linha da história, abarcando os romances de cavalaria da matéria bretã, com seus gigantes e dragões, os relatos de navegantes europeus, na era dos descobrimentos (que usavam mapas decorados com imagens de monstros marinhos) e até tratados científicos medievais, inspirados em obras clássicas da cultura greco-romana, como os 37 volumes da História Natural de Plínio, o Velho, e a História dos Animais de Aristóteles. Wilson Bueno atualiza o gênero pela paródia e humor, despindo-o de sua mística e investindo na carga erótica da metáfora animal, onde prevalecem as razões do corpo em sua violência e delicadeza” .

Num segundo momento, Claudio abordou a obra Manual de Zoofilia, publicado em 1991:

“o Manual de Zoofilia é um conjunto de trinta narrativas ou poemas em prosa. Estas breves composições, que fazem uso da metáfora, do ritmo e do paradoxo, falam de seres como a cadela e o anjo, o dragão e o polvo, a criança e o cisne, sem fazer distinção entre o real e o imaginado (como se o autor nos dissesse que tudo é real, tudo é imaginário, logo, tudo é literatura). Ao contrário de Jardim Zoológico, onde há um discurso descritivo linear, parodiando o estilo didático das obras taxonômicas, como os dicionários e enciclopédias, aqui predomina certa obscuridade nas paisagens verbais, na construção musical das frases e na fratura sintática”. De fato, piramos na leitura do texto de Bueno: “Se te amo é assim hidrófoba a nossa paixão-fim-dos-infernos: se você me falta, vampiro de saudade, pela casa vampiro e pelo vento, se você me falta. Entre o grotesco e o sublime, só atravessando você inteiramente nua” .

O bestiário é um tipo de texto vinculado à descrição, entendida como gênero do discurso em que há suspensão da narrativa – ou seja, da narração de eventos sucedendo-se no tempo – em favor da apresentação do estado do objeto, associando informações e nuances da apreciação. Na produção dos contos, privilegiou-se este gênero tanto na composição do texto quanto na percepção da própria maturidade dos escritores, uma vez que se pressupôs ser este gênero não apenas a enumeração de traços do objeto, quando se trata de apresentar as distinções do objeto em relação aos demais.
No horizonte das descrições, e na feliz realização de apresentar os seres distintos dos demais, os contos apresentam metáforas e alegorias que respondem muitas vezes a dilemas contemporâneos. Caso exemplar neste sentido é personificação da imundície dos rios Pinheiros e Tietê, nada além de um monstro criado pela fúria contemporânea de devastar enquanto emprega-se o discurso da preservação dos recursos naturais. A metáfora que, conforme define Octavio Paz , descobre semelhanças e depois as recobre, ainda está presente no “Treco”, magnífico ser que não revela senão o vazio da existência que o homem contemporâneo vem experimentando.
Outra importante vertente dos contos se evidencia nas narrativas em cujo amplexo se vêem contempladas a dimensão metafísica do imaginário humano, que costuma associar o que não-está-aqui-nem-se-vê com representações aleatórias de seres e na alegorização de situações. Neste horizonte encontram-se os seres que não foram salvos por Noé (“Swyshhh”) e a remotíssima “Ça”, deliciosíssimo ser ancestral, ora felino, ora mulher, ora deusa, que espreita de sua distância a nossa fortuna. Outrossim, um verdadeiro felino, dos mais fascinantes, que bem pode acalentar nossa solidão com o som de sua voz – “Poemia”.
Ao encerrar esta introdução, os ministrantes da oficina agradecem aos autores dos textos aqui apresentados que, movidos pelo interesse em relação à linguagem, aceitaram o convite ao jogo e ao lúdico: foi somente assim que, na “Gruta dos Diferentes, finalmente, o caos virou cosmo” .


HISTÓRIAS CRIADAS PELOS PARTICIPANTES
DO MÓDULO SERES IMAGINÁRIOS
Biblioteca Temática de Poesia Alceu Amoroso Lima
agosto/setembro de 2008


JAMBEOLICROMÁBOR

Bruna Nehring

16.08.07

O imaginário é por definição “algo que foi criado pela imaginação, mas que de fato não existe”.

Não importa que o imaginário abaixo tenha sido criado por encomenda, pelo que me concerne, se minha mente estiver espontaneamente criando e dando forma a algo que não existe, é por que algo em mim deseja aquele algo, portanto é aquilo que eu gostaria de ter mas não tenho onde conseguir. “Ergo” o meu imaginário tem uma função.

Nome: JAMBEOLICROMÁBOR

Origem do nome: Jambo (jambeiro, árvore que dá o fruto jambo)

Eólico (que aciona vento)

Aroma (perfume fragrância

Sabor (gosto definido de alguma coisa)

Características Físicas: Árvore frondosa e de folhas ovaladas, cuja copa quase perfeitamente cônica, costuma esconder as flores de um lindo tom de pink e os frutos de cor carmim escuro. Suas raizes não necessitam de terra pois são somente um grande feixe de fios coloridos que, entrelaçando-se, criam um apoio harmonioso para qualquer tipo de piso, e ao mesmo tempo terminam em duas tranças cujas pontas se encontram através de tomadas que, ao complementarem-se, produzem uma antena. Ela tem o poder de monitorar, mesmo a distância, os desejos do meu cérebro.

Hábitos exclusivos: A jambeolicromábor é móvel, sua sombra destacável, suas folhas de encobrem de lábios entreabertos, suas flores emanam os cheiros dos campos de trigo e seus frutos o sabor da minha infância. Ela tem a possibilidade de seguir-me sempre, cobrir-me com sua sombra quando o sol está quente demais, refrescar-me com o sopro suave dos lábios de suas folhas, trazer-me pelo cheiro das flores a imagem dos campos dourados, e pelos seus frutos o gosto do meu primeiro sorvete de limão.

Função: Efimpre (enfim-sempre) a jambeolicromábor sacimiga (satisfazer-saciar-mitigar) todo tornelo (retorno-anelo) de nostade (nostalgia-saudade).

Palavras da autora:

“O imaginário é por definição “algo que foi criado pela imaginação, mas que de fato não existe”.Não importa que o imaginário abaixo tenha sido criado por encomenda, pelo que me concerne, se minha mente estiver espontaneamente criando e dando forma a algo que não existe, é por que algo em mim deseja aquele algo, portanto é aquilo que eu gostaria de ter mas não tenho onde conseguir. “Ergo” o meu imaginário tem uma função.”


Encontrado um habitante de Kinea

Kellen Uehara

Foi encontrado ontem, às 10:37 horas, horário local, na cidade de Itoman, costa leste da ilha de Okinawa, uma criatura, no mínimo, curiosa.

Trata-se de um “mini-quase-ser-humano”. Esse homenzinho foi encontrado desacordado e bastante ferido por pescadores que trabalhavam no local. Segundo eles, a primeira impressão que tiveram era que se tratava de um boneco, mas ao se aproximarem, notaram que “aquilo” respirava e, assustados, levaram-no ao Shimin Byoin, um hospital da região.

De acordo com os médicos que prestaram os primeiros socorros à criaturinha, ela havia engolido muita água e estava bastante debilitada, com queimaduras de sol, hematomas e escoriações por todo o corpo. Por se tratar de um caso nada corriqueiro, a administração do hospital entrou imediatamente em contato com a prefeitura, que logo avisou o parlamento e primeiro ministro japonês.

Tichai-man”, ou pequeno-homem, como foi carinhosamente batizado pela população local, foi transferido na manhã de hoje para a Universidade de Kyoto, para ser analisado mais detalhadamente.

Apesar de anatomicamente ser bastante parecido com um ser humano, “Tichai-man” apresenta também características próprias bastante singulares. Segundo nota da assessoria de imprensa do hospital, o homenzinho de 5 centímetros de altura, possui um rosto retangular, um par de olhos de uma coloração amarelada e no lugar das orelhas há apenas 2 pequenos orifícios.

Na parte superior esquerda de suas costas, existe uma pequena “bolsa”, rosa-choque, que é “ativada” quando a criaturinha se sente ameaçada. Nos momentos de estress, essa bolsa infla e é expelido um jato de uma espécie de ácido a uma distância de

aproximadamente um metro. Três professores da Universidade encontram-se hospitalizados em estado grave, depois que tiveram os olhos atingidos por esse líquido. O poder de corrosão desse ácido é tal, que não apenas cegou os três pesquisadores, como também destruiu parte do osso da cavidade ocular.

Estudiosos e especialistas de diversas áreas de todas as partes do mundo têm desembarcado no Japão para analisar e ver de perto essa aberração em miniatura.

Existe uma lenda na região, que está relatada nas Nihon Shoki – primeiro livro oficial de História do Japão, concluído em 720 d.C. – que fala sobre uma população de pequenos seres que habitam uma ilha flutuante, localizada sobre o Oceano Pacífico, chamada Kinea. Nessas histórias há relatos, segundo o próprio livro, verídicos, de pessoas que foram levados a essa ilha, mas conseguiram escapar.


Jambeolicromábor x Tichai-man

Bruna Nehring

27.08.07

Tichai-man estava cansado de nadar. Havia-se distanciado demais de sua ilha flutuante e a terra que via ao longe não era Kinea: o mar estava calmo demais, a água estava muito cristalina e a vegetação que já conseguia ver era muito diferente. Mas foi até lá, pelo menos para descansar.

Areia muito branca, arvores muito altas com um curioso penacho na ponta, e, quase na beira da praia, uma outra, muito estranha, quase fantasmagórica, em forma de cone.

De repente Tichai-man sentiu-se encoberto por uma sombra imensa e viu-se embaralhado por dezenas de fios coloridos; seus cinco centímetros de altura debatiam-se com toda força mas não conseguiam desvincular-se do emaranhado que o aprisionava feito uma gaiola. Seu jato poderoso de ácido ia longe demais e não penetrava no revestimento escorregadio da fiação.

Jambeolicromábor sentia todo o drama daquele ser inusitado que começava a minar sua estrutura e ficou preocupada e agitada: queria a todo custo salvar a antena para que o poder devastador de tichai-man não chegasse ao cérebro monitorado por ela.

Enraivecida, dirigiu-se ao seu criador, através dos lábios de suas folhas e bradou:

“Não me destes órgãos de defesa!!! Como posso proteger-te?”.

A resposta veio rápida, tranquilizadora e definitiva: :

“Nenhuma força material, jamais, destruirá mente, espírito ou alma.”

Tichai-man X JAMBELIOCROMÁBOR

Finalmente, depois de três tentativas frustradas de fuga, Tichai-man sente agora o frescor da brisa marinha acariciar seu pequeno rosto.

Desde o dia que fora aprisionado por aqueles homens enormes, vestidos com longos aventais brancos que o tocavam, testavam e faziam com ele mil coisas naquele imenso laboratório, não conseguia dormir. Não conseguia pregar seus pequenos olhinhos por um minuto sequer, nem quando aqueles gigantes saíam e apagavam as luzes. Sua cabeça não parava. Planejava sua fuga. Tinha sua casa, seu lar, gente sua que o amava e que, a esta altura, deviam estar preocupados, desesperados a sua procura.

“Não se aproxime da zona-limite, querido.” “Não vou”, respondi à minha mãe, sempre tão zelosa.

Mas ela me conhecia. Sabia que por causa dessa minha imensa curiosidade, não resistiria em descobrir o por quê daquele lugar ser chamado “zona-limite”. Essa dúvida me incomodava.

A caminho da escola, vi de novo a placa. Como todos os dias, lá estava ela. Amarela, grande, luminosa. Mas naquele dia em especial, parecia que ela me chamava. “Só um pouquinho”, pensei.”Só uma olhadinha não vai fazer mal a ninguém, afinal de contas, ninguém saberá e tomarei cuidado. Não sou mais criança.” Fui. Ultrapassei a placa. Passei por debaixo da cerca enferrujada pelo tempo e entendi, finalmente, o por quê de “zona-limite”. Era ali, bem ali, que a ilha acabava. Era lá o limite.

“O que será que tem mais para lá? Deixa eu ver... deixa eu ver... nuvens? Só nuvens? Deixa eu ver...ops!”- escorreguei. Alguns minutos de queda livre que pareceram uma eternidade. “Devia ter ouvido mamãe.”

Mas não importa. Agora estava do lado de fora, via o sol, sentia a brisa, muito parecidos com os de sua terra. Correu. Correu desesperadamente. Sentia o cheiro do mar e sabia que era para lá que devia ir.

“Uma árvore! É disso que eu preciso. Mas...que aroma agradável!”

Diante aquela frondosa planta, exausto, decidiu descansar. Sentado com as costas apoiadas naquele imenso tronco que parecia que o abraçava, viu apetitosos frutos de cor carmim escuro. Faminto, comeu um, dois, sete, inúmeros deles. Deliciosos, alguns tinham o sabor do lanche da escola, outros, da comida de sua mãe... cada frutinha tinha o sabor das mais queridas lembranças suas. As lindas flores pink, escondidas em meio às folhas ovaladas, emanavam o aroma peculiar dos campos de trigo. Lembranças, sentimentos e sensações tão conhecidas (algumas já esquecidas) passavam pela sua mente, corpo, coração.

Não sabia, mas Tichai-man estava frente a frente com a tão procurada, mas quase nunca encontrada Jambeliocromábor.

Reptanfibius Luminus

Ricardo Vilela

Espécie animal que habita as profundezas de mares e oceanos. Pode assumir diferentes formas, possuindo escamas multicoloridas ou negras, dependendo da luminosidade e profundidade do ambiente onde vive. A forma mais constantemente assumida pela espécie possui corpo de serpente, cauda de baleia e cabeça de anfíbio, mas as variações quanto à forma incluem patas de anfíbios e carapaças semelhantes as dos quelônios.

Dotado de três olhos, sendo dois laterais e um na parte superior da cabeça, o animal se caracteriza por não possuir boca. Sua alimentação acontece pela absorção de plâncton através da pele. Possui, ainda, uma espécie de ferrão na cauda, cujo contato libera uma secreção altamente tóxica. Acredita-se que sua ingestão provoca alucinações e miragens.

Bichelho

Jéssica Carvalho

Nome:

Um chama-se Bichelho (Bestius reflectere = bicho + espelo) e o outro Psicógafo (Bestius psico fago= Psicógafo); ambos são iguais fisicamente, só diferenciam-se pela cor da língua – a do Bichelho é azul marinho, e a do Psicógafo é negra como uma noite sem estrelas.

Habitat:

Mora no guarda-roupa , que fica na floresta, dentro da caverna azul celeste da montanha verde.

Características físicas:

Em seu estado normal, é pequeno como uma criança, tem voz doce e suave como uma pluma; é rechonchudo, tem a pele meio lilás, meia lua, meio laranja, e seus olhos são grandes e redondos, de expressividade cândida, piedosamente imaculada.

Já em nível avançado, quando se transforma, fica enorme, magricela, peludo e curvo, e preto azulado, com bolas roxas espalhadas pelo corpo. Seu rosto permanece com feições humanas - as orelhas permanecem pequeninas como a de sua forma de criança, as ventas ficam grandes, os dentes pontudos e triangulares e os braços ficam arqueados e sinuosos. Seus olho ficam assustadoramente em brasa amarelo-limão, quando o ataque está iminente, se remexem e giram em espiral; a voz não é nada assustadora, fica grossa, mas fanha, por isso não fala nesse estado (a vítima poderia dar risada).

Como ele atua e ataca

Os Bichelhos e Psicógafos começam a agir quando humanos estão em baixa freqüência, debilitados por sentimentos ruins que guardam em seu coração cheios de sombra. Sentem essa má vibração e logo vão em busca de suas vítimas.

Aproximam-se delas quando estão sozinhas e pensando em maldades; não aparecem, mas ficam soprando murmúrios, que, captados pelo inconsciente, ficam parasitando seus pensamentos.

Depois, conseguem projetar sua imagem pueril na mente de suas vítimas, e atua em seus sonhos, realizando todos os seus desejos. Mais a frente, em nível avançado, começam a aparecer fisicamente, dando conselhos ruins, e fazendo a vítima ver o que quer em sua frente, como se fosse uma imagem real, como se ela estivesse frente a um espelho.

Nisso tudo, eles vão sugando a felicidade e a satisfação, tudo o que a vítima ainda tiver de luz, deixando-a pouco a pouco, louca, insana, só vendo em sua frente o que seu coração sombrio quer... gargalham e sentem-se satisfeitos, ao passo que a vítima vai se entregando.

Quando decidem atacar, mudam de forma, olham nos olhos da vítima, deixando-a em transe. Vão sugando sua alma como se esta fosse miojo, fazendo até o barulhinho. Para ele é tão saboroso como arroz, feijão, bife e batata frita.

Só são propensas ao ataque pessoas que não vigiam seus pensamentos e não cuidam de si mesmas. As que já se tornaram vítimas só podem ser salvas se o maldito falar, porque é tão engraçado, que a vítima vai rir tanto, e ele vai ficar tão envergonhado, que vai desistir de comer alma, e vai, murchindo, de volta ao guarda-roupa.

O estranho encontro entre Psicógafo e Reptanfibius Luminus

Versão de Ricardo

Tarde nublada na floresta. Satisfeito de tantas almas já sugadas, Psicógafo decide sair da montanha e aventurar-se em uma jornada até o litoral. Dotado de poderes de teletransporte, em poucos segundos lá está ele, jogado na areia branca e escaldante em frente ao mar, em uma praia deserta e paradisíaca.

Inexistente em sua caverna no alto da montanha, o calor lhe parece extremamente agradável de início, mas aos poucos os efeitos do sol sobre sua pele lilás começam a lhe incomodar. Decide, então, explorar as profundezas oceânicas e mergulha rapidamente atingindo águas abissais em poucos segundos.

Fascinado pela diversidade de cores e formas, mergulhando em um mundo totalmente diverso do seu, Psicógafo percebe então, entre tantas criaturas exóticas, uma que lhe chama especial atenção. Um animal estranho, meio anfíbio, meio serpente, com uma imensa cauda de baleia e grandes escamas negras. Curioso ao extremo, acompanha o mergulho do animal, quando por acidente toca a cauda do bicho, que instintivamente lhe dá uma dolorosa ferroada.

Atordoado, Psicógafo, que mergulhara em seu estado normal, assume sua forma metamorfa, disposto a transformar o animal em mais uma de suas vítimas. Porém, enquanto sua transformação acontece lentamente, alucinações terríveis lhe vêm à cabeça. Náuseas e espasmos fortíssimos tomam conta de seu corpo, enquanto almas digeridas e revoltas em seu interior são lentamente expelidas pela sua boca, ligadas umas às outras por um tênue fio amarelo. E então, para sua surpresa, sua própria alma, presa ao estranho séquito fantasmagórico, se esvai lentamente.

Em estado de delírio completo, sentindo os efeitos da secreção venenosa circulando em suas veias, Psicógafo acorda atônito. Incrédulo, lá está ele, inerte, jogado em meio à escuridão de sua caverna, agora estranhamente repleta de sal e areia...

Bichelho no Mar

(Encontro entre Bichelho e Reptanfibius Luminus)

Jéssica Carvalho

Bichelho estava em alto mar com sua mais recente vítima – Marina, uma bióloga frustrada e ressentida, que há anos fazia pesquisas com peixes e plantas marinhas. O monstrinho olhava ao seu redor, via o mar balançando e, atônito, pensava “muita água, muita água!” Nunca, em todos os seus séculos de existência, tinha visto o mar, acredito que sequer tenha tomado um banho! Era uma experiência nova e inusitada para ele.

Marina, já com sua roupa de mergulho, foi descendo lá pro fundo. Bichelho olhou desconfiado, sentiu medo; depois, tomou coragem e “tibum”, mergulhou. Naquele breve instante, em que sua forma tocou água, várias sensações e pensamentos se passaram em seu corpo e sua cabecinha maléfica. Primeiro ficou muito espantado, seu coração batia forte, explodindo; pensou “Essa água é molhada. Fria! Salgada!”. Depois, mais frouxo, foi ficando eufórico, eufórico, eufórico e saiu em disparada pelo mar. Rodopiou, parou, rodopiou. Deu pulos, cambalhotas, dançou com os peixes que encontrou em seu caminho. Despertaram nele sorrisos sinceros e desinteressados, e seu coração, que há tempos não sentia bater, revigorou-se. Nem sabia que podia respirar debaixo d’água, tanto menos dar aquelas piruetas!

Depois, um pouco cansado, achou por ali uma âncora velha e sentou-se no topo. Avistou Marina passar. Dali observava ela olhar os peixes e as plantas, e tirar algumas fotos. Mas percebeu sua frialdade para com toda a beleza lá no fundo. Que situação contrastante: o monstro que pode tornar as pessoas mais infelizes do que já eram sentia-se alegre, como nunca se sentira na vida. E Marina, nesta profissão há tempos, nada sentia, demonstrava só normalidade, exalava desprazimento.

Bichelho desceu da âncora, aproximou-se de Marina e a seguiu. Viu que ela estava a mergulhando mais fundo, e foi atrás dela. Passados alguns poucos minutos, os dois levam um susto: defrontaram-se com uma criatura espantosa: um “peixe”, com corpo de serpente, cauda de baleia e cabeça de anfíbio, de três olhos, sendo dois laterais e um na parte superior da cabeça, e sem boca! “Oh! Que barbaridade”, pensou Bichelho. Já Marina quase pasmou ali no fundo. Que ser era aquele!? Era uma grande descoberta!

Recompostos, Marina e Bichelho retornaram a superfície; ela fez anotações, imprimiu as fotos que havia tirado do suposto peixe e, por fim voltou para o Instituto onde trabalhava, para anunciar a todos a descoberta de uma nova criatura.

Nas semanas seguintes muito se pesquisou. A comunidade científica e a mídia já estavam a par da descoberta de Marina, que finalmente tornara-se bióloga famosa e destacada. E Bichelho, vendo Marina sorrindo de orelha a orelha, sentiu-se feliz. O monstro transformava seu coração dia após dia no fundo do mar...

Num desses dias, em que Bichelho estava a mergulhar junto com Marina, deixou-a sozinha e foi na em busca do “peixe”. Olhou em volta e logo o achou. Surpreendeu-se porque, tão logo o encontrou, ele já foi falando, mas só que foi por algo como telepatia, abrir a boca em baixo d’água não dá, e o ser estranho nem tinha boca!

— Que veio fazer aqui criança?!

— Quê, você consegue falar comigo?

— Eu não! É você que me entende ser da superfície!

— Mas como você fala comigo sem saber se eu te entenderia, como posso te entender?!

— Simples, você é tão monstro quanto eu!

— Ora seu serpenba! Seu banfíbio! Seu, seu... qual seu nome mesmo?!

— Meu nome é Reptanfibius Luminus. Não ouviu a moça me dar esse nome criatura!

— É mesmo... mas te chamo como quero seu esquisito!

— Olha quem fala, o monstro corcunda, colorido e fanhoso, que se fantasia de criança!

— Ora seu! Espera aí! Como sabes da minha metamorfose?!

— Seus fracassos seculares de falar quando está prestes a atacar chegaram até debaixo d’água criatura!

— Puxa, não imaginava...

— Quê foi, você que começou, você que pediu!

— É...! Me desculpa Reptam... re o quê?

— Reptanfibius Luminus criatura! Mas me chame como quiser Psicógafo!

— Aham! Meu nome é Bichelho, Psicógafo é meu primo de língua negra e fofoqueira!

— Ah, deixe, dá no mesmo vocês são iguais

— Não somos não! Ele é fofoqueiro, eu sou discreto, e minhas bolinhas roxas são mais bonitas!

— Ah, desculpe-me! Vamos dar uma volta por aí comigo vamos criatura!

E os dois bateram um papo longo. Naquele dia trocaram figurinhas, passearam em lugares marítimos de várias dimensões, falaram da família, das namoradas e dos amigos impossíveis... beberam vinho do porto, se embebedaram e choravam abraçados, cantando músicas de fossa e de corno pelo fundo do mar! Naquele dia, Bichelho tornou-se outra pessoa. Ops, pessoa?! Outro monstro! Descobriu que a vida pode ser melhor longe do guarda-roupa mofado em que reside!

Bichelho, no mar, fez uma amizade incomum, surpreendente e cômica... Esqueceu-se de Marina, de tudo o que fazia antes. Virou vegetariano, conheceu o amor... Ah, essa história já é outra história!

Então, fica aqui a lição de que, até o monstro meninil e fanho, laranja-lilás-lua de bolas roxas pode virar uma criatura feliz e doce! Ele quis mudar tudo, mudou tudo, agora pós-tudo, ex-tudo, mudou-se!

UMA AVENTURA BIOLÓGICA

Neuza Guerreiro de Carvalho (LFFCLUSP-HN)

A sigla já é um mistério. Decifre se for capaz

Era uma vez...

Há bilhões de anos, a “bola” que é o nosso planta ainda tinha a superfície mole mole, derretida querendo esfriar e endurecer. E nesse processo se formaram “bolhas” no meio da rocha.

Segue o tempo, ventos e água vão desmanchando rochas, formando “terra” e as “bolhas” viram grutas.

Se a terra de cima da gruta tiver carbonato de cálcio, as rachaduras do teto da gruta deixam passar água e o carbonato. Vão pingando e formando as estalactites e estalagmites (1) que quando se juntam formam colunas : a gruta fica parecendo um paliteiro de lindas formas brancas.

Esse é o cenário da nossa história e nos a chamamos de A GRUTA DOS DIFERENTES.

A Arca de Noé que trouxera para as proximidades um casal de cada bicho, deixou abandonados os que sobraram da elite, os mal feitos, defeituosos ou feios demais. Foram se refugiar na gruta e assim ela também recebeu o nome de MANSÃO DOS EXCLUIDOS.

Aí ficaram lesmas, sapos, lagartos, um peixe elétrico ou poraquê (esse sim esquecido porque era importante na Arca), lagartixas, escorpiões, camarões, morcegos, ratos, pererecas, urubus, moscas, borboletas, minhocas, aranhas, centopéias e até um tatu que logo cavou sua toca e não se misturou;. um urubu que dava suas escapadas para seus vôos de exploração. Nem sempre casais.

E aí correu solto o “amor livre”, as “amizades coloridas” porque ninguém é de ferro. Nem os bichos.

As leis da Biologia de que animais diferentes não podem cruzar foi ignorada. Afinal aquela bicharada não tinha que dar satisfação à ninguém, nem a Darwin nem a Mendel.

E um olhar lânguido de cá, outro de lá; um sorriso estranho, mas sorriso, um rebolado sensual, ferohormonios se produzindo e circulando e novos casais foram se formando. Amores difíceis, transas complicadas, mas a Natureza dominando.

Passam os anos e um dia um cientista xereta chegou sem querer à gruta e se espantou. Encontrou sapocegos, cascatixas, morpiões, cmarecas, perebu, mornhocas, barbanhas, araletas, urucamas sagartos, lesmaquê, sapotixas, sagartos, talvos, poltus, arapeias....

Dá para perceber que o mais assanhado era o sapo que namorou e casou com fêmeas de várias espécies.

Às vezes as transas foram até engraçadas : imagine uma centopéia com todas aquelas patas com o “aranho” com outras tantas. Uma confusão de patas. Mas, sempre deram um jeitinho e muitas arapéias foram geradas.

As pererecas viviam pulando pela gruta assustando um tranqüilo camarão acostumado às águas mansas. Tanto fez que o conquistou e as camarecas resultantes viviam o inverno na terra e o verão na água contentando o gosto de cada um dos pais.

O sapocego custou a aceitar dormir dependurado e a sapocega teimava em botar ovos (reprodução mais cômoda) do que parir bichinhos.

Já imaginaram uma cascavel presa por ventosas no teto da gruta? Era assim que ficava a cascatixa.

O morpião macho sempre vivia apreensivo porque qualquer escorregão, qualquer olhar mais sensual para fêmeas da gruta, desencadeava a fúria de sua metade escorpião e a cauda empinava, o veneno se concentrava e a picada era uma ameaça para a outra metade.

Os perebus oscilavam entre uns míseros pulinhos pererecos e os vôos altos e elegantes da porção urubu.

Mornhocas eram esquisitas: os gens da minhoca predominaram eram tubos anelados com asas e cara de rato. No inverno viviam em tubos cavados no solo e no verão procuram um lugar mais arejado se dependurando nas estalactites porque o teto estava congestionado pelas colunas calcarias e não deixava muito espaço.

Barbanhas eram lindas. Tinham azas coloridas, gostavam de espaços para voar e às vezes pediam carona para o urubu. Na gruta viviam trombando com as colunas. Tinham apenas 8 patas porque por seleção natural a borboleta tinha perdido suas seis patas. Também 14 seriam demais. A natureza sabe o que faz. (será que soube?) Se por azar a parte aranha da borbanha fosse de uma “viúva negra” , não adiantaria a beleza da parte borboleta porque depois da transa e da reprodução assegurada , a borbanha era literalmente assassinada.

Lesmaquê vinha de um poraquê que é um peixe elétrico e uma lesma já meio frustrada porque todos os seus irmãos moluscos tinham casa própria (as conchas) e ela não. Além disso, era lerda, rastejante e sem graça. Nem colorido tinha. Não sei o que o poraquê viu nela!!!!! Ele era ágil, “elétrico” e vivia dando choques nela para ver se ela se “ligava”

E por preconceito ou não, alguns ficaram do lado de fora da gruta: umas amebas chegadas com as grandes chuvas, umas pulgazinhas saltitantes que queriam mais espaço, carrapatos desesperançados de encontrar sangue quente...

As amebas ficaram se multiplicando tranqüilamente porque não precisavam de nenhum macho. Era só se dividir e dividir e dividir....

E ao ar livre, formaram-se rapidamente liquens que se estenderam pelo solo servindo de base a uns musgos que já eram vegetais melhorados. Aproveitavam a luz solar, faziam fotossíntese, geravam energia e formaram o seu ecossistema próprio.

Um dia...

As “crianças” dos novos bichos brincando pela gruta e curiosas como toda criança, foram remexer num cantinho esquecido da gruta. E acharam um OVO. Não um ovinho como o da sapa, mas um OVÃO. Chutaram o OVÃO como se fosse uma bola, brincaram tanto que acabaram por quebrar sua casca até bem dura. E, o “bebê” que nasceu ainda nem estava pronto e não sobreviveu. Ainda bem porque era horrível (como se os outros não fossem!!!!) Era o resultado do “amor” entre um Dinossauro e uma Pterodáctilus (2). Seria grande e pesado como o DINO e asas para voar, coisa que jamais faria pelo peso. Não era ainda um avião.

E aí, perdidos por esse mundo ainda árido, chegaram espécies também esquisitas, dois casais:

O Chipahomo com sua mulher homoleta e o homopangé com sua mulher homonhoca.

Eram o resultado de um cruzamento possível. Dois Homens recém chegados à espécie Homo sapiens estavam sós no seu espaço e só encontraram chipanzés para companhia; “namoraram” o que deu.

Um deles achou a chipanzé fêmea bem ajeitada, “namorou” e “casou” dando muitos homopanzés. O segundo homem também “casou” com uma chipanzé, mas os genes se misturaram de maneira diferente e deu com resultado os chipahomos. Esses “monstrinhos” na busca de companheiras encontraram homonhocas e homoletas. Formaram casais felizes porque podiam andar livremente (ainda não tinha árvores) nus, com um rabo para ajudar no “namoro” porque além de mãos dadas tinham rabos entrelaçados. A homoleta é claro, era mais bonita que a homonhoca porque suas asas coloridas eram atrações sexuais e as cenas de ciúmes eram freqüentes. Como bons amigos às vezes eles trocavam de fêmea para variar. Não havia leis morais, só as da natureza. E eles viviam “tarados” com muitos hormônios circulando.

Os dois casais que se achavam mais evoluídos começara a querer mandar na comunidade da gruta e colocar restrições e comportamentos.

- Não pode isso....Não pode aquilo.... Se fizer isso vai ser castigado.... Imposições vindas de sua porção humana.

Não demorou muito virou bagunça, formaram-se partidos, partiram para a briga e acabaram se destruindo uns aos outros.

Os casais intrometidos ainda usaram amebas e bactérias para fazer a “guerra biológica” e aí o fim foi completo.

E a GRUTA DOS DIFERENTES ou MANSÃO DOS EXCLUÍDOS ficou vazia, só com uma aguinha no fundo, bem transparente. Contaminada pelas toxinas das amebas traidoras, as águas não receberam mais nenhum ser vivo. E as brancas colunas eram fantasmagóricas.

FIM

ÇA*

Telma Altomare

Escolhi corporificar-me no pequeno e recém nascido planeta azul.

Podia sentir a força e a velocidade do núcleo incandescente apesar da luminosa imensidão aquosa que envolvia a superfície.

Ao estofo ocre que acolheu a minha centelha primitiva e essencial, chamei amorosamente terra.

Ora... tão enternecida fiquei pela calidez e aconchego da terra, que resolvi batizar Terra a toda aquela massa ainda à mercê das transformações geológicas e climáticas.

Recuperando-me da minha jornada, estive descansando e me nutrindo por, talvez, alguns poucos milhões de anos. Podia sentir todo tipo de efervescência da superfície, mesmo protegida no abraço da Mãe Terra terra. Devastação de uns, surgimento de outros... mas que dinamismo desta cadeia alimentar! Sem contar as raízes profundas que estalavam e se ampliavam e os vermes barulhentos buscando seu espaço nesse caldeirão fecundamente em ebulição!...

Lembro-me da madrugada em que já desperta e sobre a superfície, bocejei e me espreguicei languidamente de prazer. Deitei-me na terra alongando meu corpo esguio e delicado. Sentia o frio ar noturno e experimentava toda a sorte de arrebatadoras sensações, deliberadamente invadindo e provocando meus sentidos felinos.

Lembro-me da ausência do luar. Achara fascinante aquele satélite orbitando o pequeno planeta... mas enfim, havia um manto tão encantador daqueles pequenos corpos luminosos que não pude resistir a um ação puramente egóica em batizá-lo Sofia. Em um futuro matreiramente traçado os humanos abstrairiam Sofia, a presença feminina dos gnósticos, através do espaço próximo amplamente povoado das mais brilhantes estrelas.

A Lua Negra amplificou minha visão intuitiva.

Durante a minha gestação no ventre da Mãe, o cristal que se formava um pouco acima e entre os meus olhos amendoados tendia a ser transparente, talvez até mesmo como um adorável quartzo rosa ou uma resplandescente ametista.

Em vez disso, minha fronte felina sustenta uma poderosa pedra negra translúcida e luminosa. Negra como a lua, negra como a obsidiana dos campos da Anatólia, que veio a ser meu lar pela eternidade. Translúcida e luminosa como convém a um ser de intuição apurada como a minha.

Mais tarde, uns humanos interessantes conceberam uma história sobre felinos ainda mais interessantes em que um deles sugeria “Espada Justiceira, dê-me a visão além do alcance!”. Mal sabe ele que não precisa de espada nenhuma!... a civilização que virá a se utilizar de espadas, cimitarras, mosquetes e afins como instrumentos de opressão e domínio, também reconhecerá, no inconsciente coletivo, a espada como símbolo de discernimento.

Enfim...

Esta minha forma felina tem me agradado pela eternidade. E olhe que já presenciei o absolutamente improvável!

Evidentemente, não optei pelo negrume total na minha pelagem macia, delicada e recendendo a sol. Humanos covardes e ignorantes queimarão em fogueiras mulheres e homens visionários, conhecedores das ciências naturais e sobrenaturais e haverá, inevitavelmente, um genocídio felino de proporções gigantescas no qual os espécimes negros serão amplamente incinerados.

Sou, então, o que será chamada de “gato doméstico fêmea SRD”, ou seja, sem raça definida. Pejorativo se entrarmos nos julgamentos e pré-concepções que serão tão inerentes aos humanos. Coerente se considerarmos que todas as formas de vida que povoam ou povoarão o corpo da Mãe Terra devem estar em conluio para a manutenção da vida.

Fêmea. Tenho um milhão de razões para escolher ser fêmea. Mas, simplesmente, quero ser fêmea e ter as cores dos gunas, os fios energéticos dos quais é feita toda a matéria: branco, preto e vermelho.

Meu corpo de formas longilíneas e perfeitas é preto e branco por fora e vermelho por dentro.

Muitas deusas se espelharam em mim para se materializarem no panteão das divindades.

Meu olhar penetrante é ocre como a terra e mutável como o relevo do planetinha pueril. Nota-se minha forte foto-sensibilidade pela dilatação e contração das minhas pupilas negras. Charmosamente, elas me atribuem características distintas e independentes da minha condição emocional momentânea. Pupilas dilatadas me fazem ser uma amável e adorável gatinha. Pupilas contraídas me levam diretamente às chamas da Santa Inquisição (Santa???).

Minhas orelhas afiladas, vórtices poderosos de energia, apontam para o espaço profundo captando os mais tênues ruídos dos confins do Universo.

Esses fios grossos que nascem ao lado das minhas narinas são anteninhas que se movimentam independentes e respondem aos infinitos estímulos aromáticos do ambiente.

Mas as espirais... ah, as espirais! Estar no centro de uma espiral é estar no mais profundo silêncio de si mesmo. As minhas 3 espirais, tatuagens móveis que deslizam sob e sobre a minha pele, tatuagens da alma anciã, alinham-se e se juntam à minha mais imperceptível sugestão. As espirais são tesouros inestimáveis para manutenção de minhas habilidades metafísicas.

Ao alinhá-las, convido a energia do outro à alinhar-se também. Uns tantos humanos por vezes não conseguem permanecer em seu silêncio interno, deixando-me bastante frustrada. Mal sabem eles a relevante necessidade desta prática e experiência.

Já as árvores buscam, ansiosas, por esse momento de absoluta integridade, quando sua verticalidade deixa de pesar, inoportuna, e se torna sua generosa aliada de nutrição.

Mas com as pedras tive que, realmente, mobilizar muita energia. E para trazer a contraparte da expressão humana “você é uma pedra no meu caminho!”?! Para equilibrar aquela torrente de sentimentos de rejeição, eu trouxe a informação de que os humanos podiam usar as “pedras do caminho” para construir castelos! Mas ainda me aparece uma ou outra complexada por ter enviado alguém ao curandeiro ou ao hospital com a tampa do dedão aberta...

Enfim...

A serpente. Uma lembrança tão longínqua que até eu mesma corro o risco de tê-la obscurecido.

Em um momento que eu ainda juntava minhas partes formando-me a partir da minha própria percepção espacial e procurando por um silencioso nicho para repousar, deparei-me com uma gruta subterrânea. Era úmida, abafada, viva. Um habitat de seres escorregadios e viscosos que deslizavam seus corpos para a superfície a fim de se energizarem com o calor solar e voltavam para o ventre da Mãe.

Notei as diferenças contundentes entre o meu corpo peludo e macio e aquelas criaturas rastejantes de olhos febris. Pareciam só haver diferenças até que percebi um detalhe bastante singular: acariciei meu maxilar inferior sentindo uma forma triangular, a mesma que eu notara nos maxilares dos seres sinuosos. Notei, também, que eles captavam o ambiente da mesma maneira que eu, abrindo levemente a boca. Cheiros, formas, sabores, capturados pelo órgão localizado no palato, invadindo todo meu ser, tomando forma e manifestando sentimentos e necessidades.

Denominavam-se serpentes e compartilharam comigo seu espaço.

Aninhei-me enrolando a cauda ao redor do corpo. Na verdade, as futuras gerações de gatinhos viriam a adorar essa confortável posição facilitadora da famigerada soneca...

Sonhei com o Nada. Era o infinito negro. Uma finíssima teia foi se formando em uma ondulação que me lembrava lençóis secando ao sol, convidados a dançar pela brisa do fim de tarde. As partículas que se espargiam formavam massas sólidas e fluidas, umas quentes outras gélidas, umas minúsculas outras gigantescas, mas inevitavelmente ínfimas se comparadas ao gigantesco útero negro da criação.

Não conseguiria quantificar em tempo ordinário o período que estivera dormindo. Apenas sentia em alguma esfera da minha existência consciente um formigamento na coluna, já felina na época, que começava na boca e se estendia até a ponta da minha cauda.

Os humanos não sabem e eis a notícia em primeira mão (ou primeira pata!): muito antes de serem os felinos famigerados “ônibus de pulgas”, fomos ônibus de serpente! Melhor dizendo, eu fui...

Ao despertar, sentia-me mais pesada. A mente desperta mas o corpo ainda adormecido. Algo se movimentava em meu interior que não os ritmos do meu próprio corpo, algo como um hospedeiro.

Fiquei muito quieta tentando absorver a novidade pois percebia que a novidade estava tão surpresa e fascinada como eu e, igualmente, tentava acolher a nova situação.

Parecíamos seres de realidades distintas materializados na mesma esfera. Ela, interiormente a mim. Eu, externamente a ela. Possibilidade única de dois corpos ocupando mesmo lugar no espaço.

Tivemos, a princípio, uma existência tumultuada até o que chamamos, hoje, de convivência criativa e curadora.

Afinal, é uma serpente negra cuja boca se confunde à minha e da qual minha coluna é o corpo que finda na extremidade da minha própria cauda em guizos internos e potentes.

Ela me traz a integridade e o Poder da face terrível da Mãe. Quando inteligentemente acessada, a língua bifurcada projeta-se para fora da “nossa” boca, sibilando. Nesse momento, “nosso” corpo pode facilmente estrangular qualquer ser/objeto de contenda, mas opto, normalmente, em tentar harmonizar os desequilíbrios com o exercício de meu poder energético e a qualidade curadora das espirais e do ofídio, que viria a ser para os assustadiços e curiosos humanos o símbolo da Medicina.

Ela não aprova muito a delicadeza de meu único hábito alimentar, creio até mesmo que preferisse um rato gordo vez ou outra, mas nutro-me do orvalho especialmente fresco e revigorante recolhido da superfície das folhas às lambidas. Em tempos de escassez, meu órgão do palato auxilia a captar e recolher a umidade do ar, alimentando a mim mesma e ao ofídio que repousa, indiferente.

Você me ouvirá sempre na ausência do som.

Quando o silêncio se instaura e uma reverberação inaudível atinge os sentidos de todos os seres.

Emito o mantra primordial, tecido com a ressonância da criação.

Eu sou Ça*.

*Lê-se tchá.

Pelos, Cores, Amores e....

Neuza Guerreiro de Carvalho

“Que me desculpem as feias, mas beleza é fundamental”

(Vinicius de Moraes)

Anfostofolia era uma felina chic, da alta sociedade, que compõe o visual perua da madame na casa de quem mora. Da raça pixie bob, descendente do lince americano, tem rabo curto (5cm). Pedigree documentado. Tem direito o coleira de ametistas que combina com o reflexo que mandaram fazer em seus pelos. As pedras só não são brilhantes porque atrairiam seqüestradores e o resgate por ela, Anfostofolia, seria até maior do que o valor das pedras. Suas roupas são de grife e comprada na Daslu bichos; custam mais do que um salário mínimo as peças mais recentes. Come ração importada e para variar quitutes da Cat Bakery, feitos sem conservantes. Tem até plano de saúde especial. Anfostofolia já esteve na ilha de Caras, tirou fotos para um book e participou de um desfile para eleger a mais bela “gatosa” (gatona gostosa). Ganhou é claro.

Mas, aproveitando um descuido de madame, deu uma escapada e “namorou” o gatão da favela vizinha. Como ainda não se tinha inventado camisinha para felinos e os anticoncepcionais próprios eram daquele lote que o laboratório lançou errado – farinha pura – não deu outra: gravidez não desejada só descoberta quando da visita mensal ao veterinário que acompanhava sua saúde.

E aí a corrida: reserva de acomodações no Felinoeinstein, o hospital ISO 9000 e no momento certo Anfostofolia foi para a ala Vip. Apartamento privativo, com direito à acompanhante, madame naturalmente.

O veterinário teve que convocar, em regime de urgência, três assistentes e um anestesista para o “parto”. Para que Anfostofolia não sofresse, a equipe discutia: anestesia geral ou peridural? A natureza foi mais rápida e enquanto eles discutiam, os “bebês” começaram a nascer

Como é natural nos felinos, sempre nascem vários “felininhos” e isso certamente aconteceu, mas, para que o (a) herdeiro fosse único e recebesse o mesmo tratamento da mãe sem direto a ciúmes entre irmãos, deu-se um “jeitinho” e só uma sobreviveu. E Anfostofolia ficou naturalmente frustrada porque nem a deixaram seguir sua natureza: cortar o cordão umbilical e romper o saco envolvente com os próprios dentes, gesto com que assumia a condição de mãe. Com tesouras esterilizadas e usando luvas próprias, os assistentes fizeram o serviço. Mesmo assim, Anfostofolia curtiu o nascimento. Já tinha sentido a emoção única dos movimentos da vida dentro de si, aquela sensação especial de ser fêmea; e agora se tornava “mãe”, um status “nunca dantes conseguido”. E logo quis ver sua obra prima. Nome já tinha: Filastolfa. Era lindinha, pelo azul de bolinhas pretas, cor herdadas do pai um “gatão” pretinho.

No berçário foi a sensação. A revista Veja fez uma reportagem e a rede Globo mandou uma equipe para matéria do Fantástico. Madame orgulhosa exibia mãe e filha – Anfostofolia e Filastolfa.

Anfostofolia e Filastolfa continuaram na casa em que moravam com as mesmas mordomias. Na primeira consulta ao veterinário e por recomendação deste voltou ao Felinoeinstein para uma esterilização completa. Maternidade, nunca mais. Vigiada agora por um personal security, não pode mais dar as escapadas para suas noites de amor.Entristeceu, foi ficando depressiva e morreu antes de Filastolfa completar um ano.

Filastolfa herdou o personal security da mãe e não conseguiu dar nenhuma escapada, não conheceu o amor, não deu seus gemidos pelos telhados, não acordou casais pelo meio da noite para o amor da madrugada.

Virgem triste foi também definhando, seu pelo de um azul celeste foi clareando, clareando, clareando e ficou branco. Ela se tornou uma gatinha magrinha, anêmica branca de bolinhas pretas. Fantasmagórica.

Com esse visual não pode mais “enfeitar” a madame que tinha vergonha de desfilar com ela no colo. Encomendou ao veterinário outra gatinha. Desta vez escolheu uma de pelo verde com listas amarelas produzidas por reflexos. Já tinha então um adorno diferente para seguir para a Europa no tempo dos jogos da copa. Exibiria sua prenda brasileira nos desfiles do jet set internacional. E deu a ela o nome de Lady Di que certamente todos conheceriam. Nomes tupiniquins, nunca mais. Já então Filastolfa definhava como Anfostofolia e morreu mansinho, “como um passarinho”.

Moral da história: no mundo dos ricos a perenidade depende da aparência: Enfeiou dançou.

SWYSHHH E A GRUTA DOS DIFERENTES

Telma Altomare

Chamava-se Swyshhh.

Ele era um observador objetivo.

Nascido da manifestação da Vontade da Rainha das Fadas, sua missão era acompanhar à distância os seres esquecidos e rejeitados por Noé.

Sua primeira consciência tátil fora a parede úmida da gruta na qual permanecera durante milhares dos anos, tempo ordinário dos humanos.

Sua primeira (e permanente) percepção sobre outros seres contemplava a chegada, adaptação e evolução dos Excluídos.

Swyshhh, aquele que só olhava, viu como estavam revoltados e confusos e se estranhavam mutuamente. Viu inúmeras disputas que resultaram em mutilações e banimentos, como algumas espécies optaram pelo isolamento retirando-se para o reino abissal, nas profundezas do oceano e como outras se refugiaram em falésias nos confins do planeta...

Swyshhh, aquele que só observava, observou que a compulsão sexual originou-se justamente pelo claustro que lhes foi impingido. Sem ter como se socializar com mais ninguém a não ser os próprios seres da gruta, começaram a entabular jogos. Quando a criatividade para jogos esgotou-se, tiveram início os jogos sexuais. Naquele frenesi, sequer foi considerado que a miscigenação poderia trazer novos e invulgares espécimes.

Observou que, com o passar do tempo, foi-se estabelecendo uma crença de limite inviolável. À exceção de Noé e da Rainha das Fadas, o mundo exterior ignorava a existência da gruta. Os exilados já não mais existiam no mundo físico ou optaram por esquecer o evento arca-gruta.

Um ecossistema terrestre totalmente sem interações com os habitantes da Terra.

Swyshhh, aquele que só testemunhava, testemunhou as mutações decorrentes dos intercursos sexuais: sapocego, cascatixa, morpião, camareca, borbanha, sagarto, lesmaquê ... testemunhou as disputas de poder, em que algum Excluído mais procurava um novo folguedo do que manifestava uma real intenção política e altruísta e de como a Borbanha sempre permanecia como uma autoridade natural. Testemunhou as idiossincrasias daqueles seres que, embora grotescos no mundo externo, eram de uma fragilidade comovente.

Swyshhh, aquele que só ouvia, ouviu quando em meio a uma tempestade avassaladora, chegaram dois casais de mestiços, resultado de homens e primatas.

Tinham pequenas diferenças entre eles, mas todos os Excluídos já haviam visto ao menos um homem, Noé, e vários símios que tiveram suas passagens carimbadas para a arca. Mas foram tratados como iguais entre os diferentes, pois eram também fantoches de cruzamentos casuais.

Ouviu os murmúrios de estranheza diante das excursões do Chipahomo e do Homopangé e suas esposas, embora aceitassem o fato de que seu mundo abraçava bem mais do que a gruta. Rompiam, amiúde, os tratados de limites acuando a todos quando traziam para a gruta algum animal tradicional. Escondiam-se como podiam em fendas, saliências, atrás das estalagmites e pendurados em estalactites, passando horas imóveis até que os visitantes se fossem. Podiam ser estranhos, mas o isolamento os tornara ingênuos e vulneráveis.

Swyshhh, aquele que só ouvia, ouviu quando os mestiços símios convocaram a todos para a assembléia. Assembléia??? Afoitos para que fosse um novo estímulo sexual, sentaram-se todos juntos e em círculo, como solicitado pelos homo-símios.

Swyshhh, aquele que só testemunhava, testemunhou a agonia daqueles seres ante a carnificina que se seguiu. Animais tradicionais incitados pelos mestiços símios com seu discurso sobre uma contaminação deflagrada pelos Excluídos sobre insetos, répteis e mamíferos desafortunados que estavam na base da pirâmide alimentar. Animais que, mesmo inseguros da estratégia, temiam a fome das crias e a extinção da própria espécie.

Swyshhh, aquele que só observava objetivamente, passou então a participar subjetivamente. Alterando sua estrutura molecular, transformou-se em um fio suficientemente denso que pudesse recolher quantos Excluídos conseguisse.

Foi assim que Swyshhh os trouxe a mim, os Excluídos aos quais batizei amorosamente Insólitos e com os quais partilhei a vida durante longo tempo...

Nem em tantos milhões de anos eu vira algo tão bizarro!

Pensava que fossem mito. Eh eh!

Eram 20, talvez 30 deles, unidos por Swyshhh, um fio fino, gracioso e extremamente forte.

Parecia uma brincadeira grotesca, mas era mesmo um lamentável incidente ver aqueles seres insólitos definhando, suas vidas singulares se esvaindo.

Swyshhh os mantinha ainda com um sopro de vida. Não fosse a sua trama tecida com as cores do arco-íris, sua energia cósmica fluida, as criaturas já teriam embarcado não na arca de Noé, mas na Barca de Caronte.

Levei-os a uma caverna próxima dali no fundo da qual corria um riachinho de águas frias e cristalinas.

Alinhei as minhas espirais e levei minha atenção completa à saúde dos Insólitos, como passei a chamá-los, carinhosamente, na intimidade.

Swyshhh, aquele que se transformava, transformou-se novamente em uma película finíssima e translúcida, pousando na parede da caverna, onde voltou apenas a observar.

Morpião me parecia o mais fragilizado. Com intenção de suicídio iminente e já posicionando seu ferrão potente para o centro das costas, teve um frêmito ao captar o cheiro do leite que se esvaía, abundante, das tetas da mamãe loba que me seguira caverna adentro e o olhava, curiosa. Algumas gotinhas do líquido quente na boquinha escancarada trouxeram-lhe a promessa de vida. Relaxou o ferrão e abriu as pequenas e translúcidas asas em um aceno de renascimento. Arrotou, bastante satisfeito e caiu em um sono pesado, literalmente de cabeça para baixo.

Sobre o olhar multifacetado da Borbanha, os véus do pesar e do constrangimento. Esticava as várias pernas tentando, em vão, alcançar algo que não via. Talvez um pálido reflexo da maestria de seus movimentos que lhe conferiam aquela soberana e natural autoridade ante os outros Insólitos. Não pude curar-lhe a cegueira causada pelos maus tratos e tempos ruins, mas amenizei-lhe os sofrimentos ao deixar ao alcance de suas pernas ansiosas um inseto daqueles mimetistas, parecia um pauzinho, mas sabido deliciosamente doce. Ela o rolou entre as pernas e o trouxe às pinças na boca, saboreando-o regiamente.

Ops! Como dizer-lhe que perdera quase integralmente as asas majestosas? Mais tarde, mais tarde...

O Cascatixa estava famélico, porém mais inteiro e fortalecido que os demais. Bem, é certo que desta última vez seu rabo se regenerara sem os guizos, conferindo-lhe um silêncio pouco habitual. Nada que uma dieta à base das baratas que ele adorava não remediasse.

Aliás, ele era um mistério para todos na gruta. Como podia ser tão deselegante sendo fruto dos amores furtivos de dois dos mais silenciosos rejeitados por Noé? Mastigava ruidosamente com a boca aberta aqueles baratões cascudos e depois, tuf! Cuspia longe as perninhas sem se importar a quem atingissem. E vivia a balançar freneticamente aqueles guizos, prenunciando o que viria ser a bateria barulhenta do Punk Rock.

Alimento vivo, alimento morto, frutinhas, água fresca para uns, turva para outros, pólen, néctar, flormel... Atenção, cuidado, parceria. Naquela época o tempo era mais pachorrento. Assemelhava-se mais a ampulhetas orgânicas do que a implacáveis relógios digitais.

Todo se restabeleciam e se fortaleciam protegidos pela caverna. Deixou-nos apenas o Carraquito. A dupla linhagem insaciável pelo sangue alheio acabou sendo a sua ruína. A mamãe loba estava tão enlevada por participar daquela regeneração coletiva que além da calidez de seu leite, doou também seu sangue. O Carraquito não apenas se nutriu, mas bebeu até morrer. Ou melhor, até explodir.

Ficamos todos um pouco desolados por perdê-lo de overdose, mas são as escolhas de cada um.

Embora satisfeita com a saúde dos mestiços, uma preocupação constante permeava meus instintos: as frenéticas máquinas sexuais sequer chegavam a trocar beijinhos.

Swyshhh, aquele que só ouvia, e os Insólitos jamais falaram sobre o evento que os trouxera tão longe da gruta, e percebi que, entre os Insólitos, havia um pacto não verbalizado de castidade e não procriação.

Por vezes, um silêncio grave envolvia toda a caverna e eu podia sentí-los a se entreolhar ou “entre-sonar”. Normalmente, alguém rompia aquela barreira de angústia com uma exclamação de fome e iam cuidar das suas vidas.

E foi após uma chuva no meio da tarde com tênues raios de sol atravessando as nuvens, que Swyshhh, o guardião, concedeu a mim a guarda das suas memórias, antes de sublimar-se em centelhas luminosas e etéreas e retornar ao arco-íris, sua essência. Swyshhhhhhhhh...

Em uma parceria de amor e generosidade, ele fora maneira que a Rainha das Fadas se utilizara para comungar com a Mãe Terra, apenas observando seus filhos mas estendendo a mão compassiva na crise.

Na caverna, após saberem compartilhado o terror em seus corações e vislumbrar um novo futuro, finalmente os Insólitos puderam relaxar. A possibilidade de ampliar os horizontes indo além dos limites da caverna começou a tomar forma.

Seria uma escolha de cada um. Compreenderam que sem defesas internas, os limites externos de nada adiantam.

Alguns se aventurariam, outros não.

Os homo-símios? Não sabemos onde estão. Talvez propiciando a outros que conheçam mais intimamente a si mesmos e aprendam com as maldades arbitrárias.

Quanto às transas, voltaram com toda a força, mas as preliminares tomaram uma dimensão bem maior.

Enfim...

O arco-íris sempre me recorda Swyshhh.

E na Gruta dos Diferentes, finalmente, o caos virou cosmo.

O Treco

Roberto Dupré

Lá em casa, a gente o conhece por Treco. É um bicho agressivo. Muito conhecido, mas sem face, descrito pelo jovem tenente-médico irlandês, Ira Mcguiness, no auge da Primeira Guerra mundial. Ele observou que vários soldados --imediatamente após os longos bombardeios costumavam ter acessos de desmedida euforia: e incontrolável bravura: pulavam para fora das trincheiras e ficavam brincando em meio ao fogo cruzado, gargalhando. Outros urinavam de pé enquanto as balas zuniam para todos os lados.

Nunca dei importância ao Treco até o dia em que ele me pegou. Sim, não somos nós que pegamos o Treco, é ele quem nos pega. Você acorda e percebe que continua vivo. Você olha para dentro e não consegue distinguir os próprios sentimentos. A sensação não é de medo. Tudo que você quer é fugir de terrível estranhamento . O comportamento passa a ficar absolutamente insuportável. Mas não a ponto de você ser incluído em alguma categoria nosológica, Enfim, ninguém sabe o que é o Treco, nem como tratá-lo. Só se sabe que ele causa danos irreparáveis, O Treco é, antes de tudo, um brincalhão. Transforma amor em ódio. Segurança , em pânico e faz das pessoas atores à procura de um palco. Algum dia na vida, você experimentará o Treco. Desculpa, O Treco é quem experimentará você. E, mesmo se, num gesto extremado você resolver escapar, ainda assim, se espatifará na calçada atrapalhando o tráfego.

Minha mulher, psicóloga arguta, comentou, enquanto lia para mim (perdi uma parte da visão) o Jaguadarte: ih! vou ter um Treco! Em lesmolisas touvas. a boa e velha Teresa, nascida e criada na aridez do Jequitinhonha, suspirou um audível vige e fez três vezes o sinal da cruz, achando que o almoço de feijão de corda ia acabar em briga do casal. O treco é o treco.

Pela sua explosiva carga de irritabilidade social, o Treco é muito contagioso. No dia dos pais, comentei “Nossa, querida, a comida está ótima. Ao que ela respondeu: claro! Você já comeu merda nesta casa?

Diante daquele merda, sibilado entre os dentes, Zig, o espertíssimo basset do meu neto, correu para o quarto e se escondeu debaixo da cama.

Há muitas histórias fantásticas sobre o Treco. Nem sempre exclusivamente humanas. Num sábado quente do último verão, levei o Zig pra passear.No meio do quarteirão, percebi um pitbull mal encarado vindo em sentido contrário. Zig uivou fazendo esgares horríveis com a boca. O pitbull, prudentemente, atravessou a rua.

“A Sereia e o Espantalho”

(O prólogo)

Felipe Rodrigues

Como busca ao interior do que se vai em torno de minhas visíveis dificuldades,

Eu sou o espantalho, feito de palha, feito de galho,

Com meus pés amarrados à terra firme da realidade,

Poderia dissimular esse cataclisma que ecoa sobre tudo que me diz verdade,

Não lutar pelos meus sonhos, mesmo podendo olhar para o céu,

Estagnado, sem sentido, isento do direito de sinceridade,

Minha opinião não importa, e por mais que force minha vista,

Estás muito além de meu horizonte,

E o amor que carrego pela lenda de sua beleza,

Desintegra o massificado vazio de meu peito que jaz sem um coração...

Poderia me parecer efêmero imaginar a tua existência,

Sabendo que não posso exceder minha superfície,

Eu que sou sereia, que te inveja, te odeia,

Que não entende seu desvalorizar da chance única,

Em o céu, sempre que quiser olhar,

Depressiva face de espantalho estagnado,

Que a tua imagem passe bem longe de meus caminhos.

Sereia que tu és,

Sabedoria creio que tenha,

Então vos digo para que de uma única vez entenda,

De que me vale um céu grande e belo,

Se parte de minhas intenções e quase todas as minhas atenções,

Estão focalizadas em algum lugar dos sete mares,

Onde um coração qual não tenho, sonho que delicadamente bate,

Apenas rogo para que alguma intervenção divina não te afaste.

Pântano que atola os espíritos derrotados,

Tenho que ainda ouvir as lamúrias deste condenado?

Oh! Deus do mar! Perdoe tamanha ignorância,

Engane minha carne, dê-me a fiança,

Mas, por favor, afaste-me dessa ignóbil criança.

Ah, minha querida sereia do mar,

Juro que não julgo-te por não querer me amar,

A escolha em algum dia querer me acompanhar,

Exigirá de ti uma devoção muito maior do que essa que se dispõe em me odiar.

Mantenha-me longe de suas insanidades,

Palhaço espantalho...

Tua insignificância mal me chama a atenção,

Engano seu se acha que perco tempo em devaneios,

Cultivando ódio contra ti em meu coração.

Se suas palavras ao menos fossem um sonho que luta em ser verdade,

E se seu esforço forçasse-me em crer na ilusão de teus passos,

Faria de tudo e infligiria minha certa realidade;

Infligir tua realidade não é simplesmente o que penso em fazer,

O que penso em transformar é além do que pode lhe parecer,

Além do que possa imaginar ou querer...

Começo a sentir-me impaciente,

Com essas frases em pouca velocidade,

Por favor, de uma só vez me fale!

Não tenho para ti toda a eternidade!

Que seja em verso ou seja em prosa,

Não tenho medo algum de um erro cometer,

Se o que precisa é ver esse espantalho correr,

Terá que rever seus conceitos,

Pois irá se surpreender,

Não quero de ti somente o teu amor,

Nem tão pouco sua beleza,

Necessito-me fazer um pouco mais,

Para que aprendam sobre a minha misteriosa natureza...

Então que seja assim palhaço espantalho,

Se em um único ato me surpreender,

Terá um mundo a receber.

Não me importo em apostar,

E ficarei esperando a ti sucumbindo minhas razões preconceituosas em qualquer beira de mar

Darei uma única chance

Não ouse me desapontar.

Na beira ou até mesmo no fundo do mar,

Meus atos não necessitaram te procurar,

Agradeço a chance e me faço em silêncio,

Pois à partir de agora terei o que aproveitar...

Meu primeiro passo...

O Treco “Palhaço Espantalho Palha”

(Parte 1)

Felipe Rodrigues

Mas então começara sem vírgula, o que antes uma vez era outra era uma vez como nunca foi antes... Ciclos em palavras distantes, roeram as bordas de todos significados e flutuaram pelas alamedas dos significantes; O ritmo inconstante contou cada palavra por cabeça não obstante, portanto consagrado mundo; O sangue escorreu pelas pernas da humanidade e de pedra a vidraça o sonho que muda de forma de uma vez se estilhaça. Fluídos de momentos delirantes, o progressivo parágrafo embaralhando e repetindo significantes, mude sua forma também e como uma seqüência em escala não volte a ser o que nunca foi antes vírgula sem... Começara então, mas do poema recebera interrupção e quase acabara como previsto o inverso da primeira oração...

Amor que sede o mundo,

A chance de um segundo,

Que o esboço de um sono profundo,

Não seja mais que um movimento moribundo,

Ellen era jovem, Ellen era criança. Seus cabelos dourados cintilavam dando a impressão de luz dentre a paisagem preta e branca das casas feitas de pedras... Estávamos em alguma época da idade média. O céu, também cinza, invejava seus olhos azuis e seus passos mancos dissolviam com inocência e muita pena a imundície em que se encontrava seu corpo. Ellen sonhava um dia ser princesa, subir em um palco e obter reverência por toda realeza.

Subindo no palco como havia sonhado, Ellen tinha seus pais ao seu lado. Toda corte presenciava, um homem estranho com um papel na mão algo berrava, Ellen sorria, Ellen estava satisfeita dentro de seu mundinho arrebatado e ingênuo. As pessoas pareciam não gostar muito, pois xingavam irritadas e gritavam cada vez mais alteradas. Ellen olhou outra vez para os pais, quais mal sorriram infectados pela doença do medo. E a inocência se perdeu no caminho de volta ao seu coração.

Foi quando posicionaram friamente as cordas que tinham a largura de seus pescoços. Assustada, apertou com força seu palhacinho feito de palha... Era esse; qual ela carinhosamente chamava: “Palhaço Espantalho Palha”. As pessoas gritavam: bruxas! Feiticeiras! - E Ellen não compreendia o motivo da maldade naquelas absurdas besteiras... Com muito medo também lembrou da oração que sua mãe um belo dia mal lhe ensinou... : - Palhaço Espantalho Palha! Palhaço Espantalho Palha! Abra os olhos, sinta o cheiro da vida e não atrapalha... – Um barulho brusco ecoou, o chão se abriu, o pescoço de Ellen e logo em seguida os de seus pais seriam quebrados. Em um instante de dor e falta de ar, esforçou-se em falar, mas não conseguiu; pensou: Fuja!

Não pela morte que resultou-se enforcada, Ellen ainda estava viva e teria outros instantes se uma preconceituosa mulher não atirasse uma enorme pedra em seu rosto. O sangue logo escorreu e o espantalho se encharcou, ficou vermelho. A mão de Ellen por fim perdeu a força e logo largou o boneco de pano... Finalmente estava morta...

[[O desespero em se confortar gritou por ansiedade ao fundo do seu coração que se perdeu em espinhos que sem sentir sangue escorrer ainda teve muito que doer. Sem poder se levantar se prendeu colocando a serenidade na linha bamba entre a paciência e o instinto;...;...; Pela poesia se perderam os pontos” e o absurdo da loucura ´tornou forma difícil de se entender comoº § a mensagem ao intenso .vazio ne.cessário correu ao infinito e voltou espatifando todos seus sonhos contra a sua incapacidade de realizá-los.]]

O sangue era angustiado, o espantalho depois de muito tempo ergueu o braço e como de sopetão de um treco assustado, seu corpo ergueu-se nada animado. Curioso olhava a que parecia ser a sua dona... Enforcada ali no alto sem fazer nada, o espantalho apenas a observava e raciocinava. Não sentia cheiro e pouco sabia além de sua língua falada, acabou-se que nem percebera o que havia em questão; Sua dona estava morta e ele não tinha coração.

Mas o problema agora mal interpretava; Como instinto do homem, queria saber, queria entender, suas origens; o significado de viver. O treco por hora começava a fazer encanto, entretanto sem explícita ação. Assim como deseja um homem, o espantalho sairá para entender sua história e motivado pelo treco do saber se dizia interessado em não querer.

Arrumou seus galhos, fez a pose e saiu pelo mundo... Torcia para encontrar o que queria e lá se foi como um andarilho moribundo...

Ódio que entrelaça as dúvidas no instante em absoluto,

A chance de um segundo,

Se foi na dúvida pela medida em crer em um amor profundo,

E agora pelas tristezas e incertas,

Desata nós que não lhe pertencem,

Sempre culpando seu mundo moribundo...

PERFIL DE UM PERSONAGEM IMAGINÁRIO

DoCarmo

Figura de uma senhora idosa, de semblante calmo e atitudes generosas, vive em uma comunidade nômade, sem destino preestabelecido, não leva bagagem alguma, mas apresenta-se vestida com sobriedade e esmero. Sua missão é fazer com que as pessoas vivam realizadas em todos os sentidos; sua característica diferencial no grupo é estar sempre usando um chapeuzinho de feltro preto com uma rosa amarela, que muda de posição e de aparência, - uma vez está viçosa e outra seca, pode estar sobre a aba ou sob ela.

Sua magia é transformar-se em uma BORBOLETA AMARELA para seguir as pessoas e discretamente avaliar seu comportamento para saber como vai sua alma e criar uma situação reversiva. Com temperamento alegre e comunicativo, naturalmente inicia uma conversa e com sutileza encaminha para uma confidência; é comilona, mas nada egoísta, porque sempre divide com os companheiros, que são muitos, o pouco que recebe da caridade alheia.

Tem alguns comportamentos estranhos deixando os amigos apreensivos; de repente desaparece do grupo voltando alguns dias depois transbordando de felicidade e raramente regressa tristonha, cansada ou queixosa. Por mais que seja questionada, nunca revela o motivo de sua ausência misteriosa e tão pouco diz onde esteve.

Esta é mais uma “FADA MADRINHA " de nosso FOLCLORE.

LIONKE

(Mistura de leão com cobra)

Fabiana Generoso

É um animal que vive em lugares escuros onde os seres humanos não podem vê-lo, mas podem ser vistos por ele. O Lionke, tem corpo de leão, crina de cavalo e sua língua é uma cobra.

Gosta de companhia, mas vive sozinho, pois ele mata quem chega até ele.

O Lionke entra no sonho dos seres humanos e uma vez que a pessoa tem seu sonho invadido ela não consegue escapar porque ele invade o sonho como uma névoa branca sufocando a pessoa e atraindo–a para sua caverna, onde não se pode chegar caminhando, a vítima chega até o Lionke flutuando dentro da névoa.

A névoa é o veneno liberado pela cobra que evapora e vai em busca da vítima.

Quando a pessoa chega na caverna é morta e deixada no chão e o Lionke vai em busca de uma nova vítima.

Esse ser não se alimenta com nada sólido somente absorve a aura da pessoa, o Lionke somente morre se acabarem as pessoas do mundo.

O milagre da Borboleta Amarela

DoCarmo

Século XXI, na capital de um próspero estado acontece um fato inusitado e mesmo o avançado desenvolvimento científico não consegue explicá-lo.

Leda, filha caçula de eminente cientista encontra-se internada em um sanatório de doenças mentais, vítima de alucinações noturnas e durante o sono. Os relatos que ela faz à respeito desses acontecimentos, são na realidade inverossímeis, pois afirma ser visitada por uma borboleta amarela que conversa com ela, acalmando-a e pedindo para que tenha paciência pois logo tudo ficará esclarecido.

Esses distúrbios começaram com um outro personagem, descrito por Leda aos prantos, porque ela diz ser monstruoso. Assim o descreve:-

Logo que adormeço entra em minha mente um animal com corpo de um enorme leão, de juba em crina de cavalo, boca enorme e língua em forma de cobra soltando uma névoa esbranquiçada que a envolve e arrastando-a para fora do quarto, tenta levá-la para uma caverna escura e devorá-la. Essa caverna ela vê em meio à névoa, como se estivesse em rochedos. Sempre é salva pela borboleta amarela, que batendo suas asas ao voar, dissipa a névoa fazendo o " Lionk " perder as forças e enraivecido retirar-se com urros assustadores, provocando seu acordar em prantos e como sempre é carinhosamente acariciada e acalmada, com doces palavras, pela senhora de chapeuzinho de feltro e uma rosa muito viçosa de cor amarela em sua aba, volto a dormir tranqüilamente até que alguma enfermeira da manhã me acorde para o novo dia. Ela ainda está ao meu lado e sorridente e muito meiga, beija meu rosto e promete voltar logo, logo; mas ninguém cré no que falo.

Leda vive triste e em depressão, somente recupera sua beleza e vigor quando recebe a visita da " Fadinha ", como apelidou a " Senhora da Rosa Amarela ".

Seu pai não sabe mais o que fazer, sendo eminente cientista, descobrindo curas inimagináveis, como não consegue eliminar essas perturbações de sua menininha, a adorada Leda?

Certa noite, depois de muito pesquisar, teve uma crise de choro. Chorou tudo o que reprimira durante esses meses de angustia. Mas.... sente uma mãozinha quente e macia deslizando sobre sua cabeça, ao mesmo tempo que sussurrava ao seu ouvido palavras de consolo e esperança. De início supos ser sua esposa tão amargurada como ele pela doença da filha amada e vagarosamente foi diminuindo o choro e ....Oh!!!!, quem é a Senhora?

Sentada a seu lado estava a “Fadinha” a "Senhora da Rosa Amarela ". Atônito passa as mãos sobre os olhos, querendo limpá-los, mas a voz meiga e calma da senhora dizendo que não está sonhando, que ela é real e não quer o mal de sua filha, ao contrário, quer apenas que ela se liberte daquele monstro feio e malvado que faz sua vítima as meninas muito amadas pelos pais, uma vez que na adolescência foi vítima de sua madrasta, uma bruxa má, que nunca pode ter uma filha meiga e bela.

Santo Deus, então a “Senhora da Rosa Amarela " é real e eu estou conversando com ela, aqui em minha casa, no meu escritório?

Meu amigo, diz a senhora, faça tudo o que eu lhe disser e verá que em treze dias estaremos nesta mesma casa comemorando com uma estupenda festa o retorno de sua amada Leda.

A mãe de Leda, atraída pelo choro do marido, dirige-se ao escritório, incrédula, tudo vê e ouve. Aproxima-se da boa senhora e abraçando-se a ela, beija-lhe o rosto já marcado pelos anos vivido, agradece e oferece-lhe a casa para que morem juntos.

Com seu habitual sorriso a senhora levanta-se, agradece e diz que sua missão não permite que tenha morada fixa e olhando nos olhos de ambos, mais uma vez abre um largo sorriso e transforma-se na linda e grande Borboleta Amarela, tal qual Leda descreve.

Muito emocionados o casal recolhe-se ao leito, adormecem e ambos têm o mesmo sonho com a " Fadinha " que explica todas as providências para a cura da menina.

Passados treze dias da conversa, a casa de Leda encontra-se toda iluminada e repleta de amigos, para juntos com a filha tão querida, comemorarem seu regresso e ao mesmo tempo homenagearem a Senhora do Chapeuzinho de feltro com uma Rosa Amarela na aba, que se transforma em Borboleta Amarela e testemunharem perante toda a sociedade científica e descrente, que FADAS, BRUXAS, MAGOS, DUENDES, etc., existem e fazem milagres.

Tudo depende de nossa " IMAGINAÇÃO ".

O encontro do Lionke com a Borboleta Amarela

Fabiana Generoso

Existia um pequeno povoado onde viviam pessoas muito felizes, tudo era motivo para comemorações não havia lugar para tristeza.

Após um dia muito festivo todos voltaram para suas casas e para dormir, pois precisavam descansar para o novo dia que iria começar...eles não imaginavam o que iria acontecer naquela noite.

Em uma das casas a mãe colocou sua filha para dormir e foi para seu quarto dormir também, deu um beijo de boa noite em seu marido e os dois adormeceram.

Na madrugada quando estavam no sono profundo o lionke entra no sonho da mulher e ela é envolvida pela névoa e sufocada, não conseguia gritar por socorro, chegando na caverna quase morta o lionke terminou de matá-la e a deixou no chão e foi atrás de outra vítima do povoado...até que começou a amanhecer e ele parou de atacar.

Na manhã o homem acordou não viu sua mulher ao seu lado, foi até o quarto da filha que dormia profundamente e sua mulher não estava lá, procurou no restante da casa e não a encontrou e começou a ficar desesperado, onde ela poderia estar.

Saiu para ver se ela não estaria na casa de alguma amiga e descobriu que outras pessoas também tinham sumido. Ele voltou para sua casa desesperado e acordou sua filha, abraçou a menina e chorou pensado em onde sua mulher poderia estar.

Todos estavam desesperados, pois nunca ninguém havia desaparecido e a tristeza tomou conta do povoado, o lionke continuou atacar.

Um dia apareceu uma senhora simples usando um vestido amarelo e um chapéu de feltro preto com uma rosa ama rela muito linda na aba, mas quando chega no povoado a rosa que estava chamando a atenção de todos pela beleza começa a murchar e a senhora percebe que a tristeza tomou conta daquele povo e resolve ficar um tempo lá para ver se descobria o que estava acontecendo.

Durante a noite em quanto a senhora dormia, o lionke tentou entrar em seu sonho mas ela percebe e se transforma em borboleta quebrando o encanto o lionke fica furioso por não ter dado certo e desaparece por um tempo. Com isso cessam os desaparecimentos e a alegria volta, mas a senhora não vai embora pois sua intuição diz que a tristeza ainda não deixou o povoado. E ela estava certa pois após esse dia em que estavam todos felizes o lionke volta a atacar e dessa vez mais forte e resolve ir atrás da senhora que se transforma em borboleta mas não consegue fugir pois o lionke estava muito forte, mas sua vontade de ajudar as pessoas fez com que ela lutasse até que acontece uma explosão e um clarão amarelo claro sai da casa em que estava a senhora, todos acordam e saem para ver o que está acontecendo e vão ver se a senhora estava bem, mas não há encontram.

O lionke nunca mais voltou a atacar e a senhora da rosa amarela como ficou conhecida por aquele povo também desapareceu.

A explosão daquela noite foi a morte do lionke e da borboleta amarela, pois a junção dos poderes causou uma reação química muito forte que nenhum dos dois conseguiu suportar, mas eles se transformaram em uma linda estrela e seu brilho é capaz de alegrar até a pessoa mais triste.

Mhi

Marlene Kasbar

Não se sabe de onde veio nem como e quando surgiu. Poucos o viram, e quem diz ter visto, relata a experiência do encontro com sorriso estampado nos lábios.

As informações são coletadas aqui e ali por todo o planeta.Sabe-se que é do tamanho de uma bola dessas de ginástica, felpudo e macio. O pelo cinza, reluzente, às vezes se torna azul ou vermelho brilhante, já o viram amarelo. Parece que tem a ver com a temperatura do ambiente. Não tem pernas, só pezinhos e bracinhos curtos. Olhos grandes e negros, boca pequena. Vive de luz e água fresca nas montanhas. Locomove – se saltitando, mas quando quer voa na velocidade da luz. Pode estar em qualquer parte do mundo, desde que tenha luz e água cristalina.Tem vários nomes, o mais conhecido é Mhi.

Os relatos coincidem: a pessoa está sentindo muita, muita tristeza ou existe conflito entre um grupo e de repente aparece Mhi, a bola cinza reluzente saltitando. Ao serem tocadas, estas pessoas sentem algo fluido quente, mas que não sabem definir o que é com exatidão, que é absorvido instantaneamente pela pele e se espalha instantaneamente por todo o corpo envolvendo-o por inteiro com sensação de bem estar e intensa alegria. O tempo de duração é variável, mas é o suficiente para que recuperem o equilíbrio emocional. O único som emitido relatado é semelhante ao de ronronar.

Tem sido tema de várias reportagens, com explicações que variam de previsões de Nostradamus sobre o fim do mundo a contestações de cientistas irritados com crendices populares.Todos os cientistas estão irritados, exceto Armando.Ele secretamente acredita.Já teve uma experiência com Mhi.

Uma indústria farmacêutica muito respeitada e conhecida por inovações no campo de substâncias terapêuticas possui os mais renomados pesquisadores que trabalham em turnos desenvolvendo estimulantes, anabolizantes, ansiolíticos, antidepressivos. Atender as necessidades atuais da população é a filosofia da empresa. Uma substância de uso tópico, que provoque sensação de bem estar sem efeitos colaterais nestes tempos de crises depressivas seria simplesmente revolucionário!Que substância seria essa? Quanto este ser produz? È possível sintetizar em laboratório? Armando pensa enquanto aguarda o termino de mais uma experiência no laboratório de testes.

TIETÊ-PINHEIROTÓRUM

Wendel Christal

Este animal foi criado pelos seres humanos, a partir da seguinte mistura: gases, produtos químicos, restos de frutas, fezes e urina.

Às suas margens, gera “pequenas” ratazanas de 30 a 50cm, devoradoras de tudo, que após a primeira semana de vida se transformam em capivaras gordas e peludas, de quase um metro. Já na segunda semana, os pêlos desses filhotinhos crescem ainda mais, o animal toma a forma bípede, dentes caninos e gigantes apontam de suas dóceis bocas, e o bichinho se transforma no famigerado chupa-cabras, animal que adora atacar o imaginário de famílias inteiras do interior de São Paulo. Após os ataques, voltam às margens do rio, dissolvendo-se em barro, lodo e gosma, isto é, numa água podre, cujo aroma lembra os fétidos gases produzidos pelos humanos, mesmo.

De tempos em tempos, a grande ira deste animal se manifesta por meio de pequenos dilúvios, transbordando suas águas fétidas, que engolem ruas, carros, pessoas, barracas e casas localizadas em seus arredores.

Alimenta-se da indiferença e do desprezo humano por um dos maiores bens da vida, a água, que o próprio “dito” humano necessita para sobreviver.

Aliás, ultimamente, em razão da ganância dos homens pelo dinheiro, e também em decorrência de seu forte egoísmo, este tenebroso ser tem surgido em inúmeras partes do globo terrestre, cujo propósito, não do bicho, mas do homem, é engolir a Terra inteira.

26/08/07

PROCURAR O ENCONTRO DO MHI COM O TIETE

MILOLHOS

Eneida Meira

É um ser de milolhos atento aos ataques de demonios peludos, horrendos,fantasmagóricos que costumam atacar os seres vivos e sugar suas energias para ele próprio viver.Atacam quando menos se espera e a vítima fica indefesa pela surpresa.Se o ataque é verbal com injúrias e inverdades como soi acontecer com os casais desarmoniosos, ela a vítima nào consegue articular palavra e quando enusitadamente o faz,só saem asneiras desconexas.(É mal, hein?É milólhos porque cada póro é um olho, mas nÃo olhos comuns, mas sim aqueles que veem e enxergam, os que premonizam,os que sentem quando vai ser roubado,ou quando o violento bandido aproxima-se com o intento de fazer-lhe mal.Ele está presente em tudo e em todos.Quando você anda na rua e recebe um esbarrão;se o semáforo demora para abrir e voce tem que correr para não ser atroopelado;se é empurrado para fóra do metro,quando o que voce quer é entrar.Se voce puxa conversa com alguem no onibus para a demora da viagem tornar-se agradável e o seu vizinho vira o rosto para o outro lado; mesmo que voce compreenda que ele tem problemas e não quer ser incomodado.Esse monstro desagradável em que se tornou, era apenas um homem ou mulher.Mas agora transmutou-se num bicho asqueroso, semelhante a um sapão deformadoTem a barriga desproporcional dos que só comen fóra de hora, come guloseimas para aplacar o apetite natural da hora do almoço e come muito também depois que o sol se põe,quando segundo conselhos que, julgo orientais, alguns órgàos digestivos estão adormecidos.E o sapão continua engolindo qualquer inseto que voe ao alcance de sua desmedida língua.Vai crescendo, crescendo igual ao sapo que estourou de tanto inchar para ficar do tamanho do boin segundo a fábula.E depois chamam a hisóri do cíclope grego de lenda!

Os heróis e a grande vitória

Eneida Meira

Ulisses, personagem carismático destinado a ser herói comum, defensor dos direitos de todos e da justiça, nem sempre dormia tranqüilo.

Certa madrugada, dormindo e parecendo sonhar, chegou a sentir forças discordantes com a imagem de bolas pendentes, comuns em laboratórios de física, que batem umas nas outras, repelindo-se. Uma forte desarmonia estava no ar.

Então lembrou-se do capítulo ciclópico em sua vida.

- Que fim levou Polifemo que venci tão astuciosamente?

E na sua cabeça ainda as bolas rebolavam,

- Ele é do mal, dizia a si mesmo,mas eu fiz um trabalho completo ou apenas uma emergência para fugirmos de sua caverna ?

Levantou-se, foi apressado ao banheiro, sentiu fome foi comer e aqueles pensamentos sumiram. Vestiu-se, penteou cuidadosamente os longos cabelos, beijou a esposa e olhou o belo dia lá fora.

Saiu a andar. Na rua grupos de pessoas cochichavam em atitude de segredo importante. Alguém dirigiu-lhe a palavra, temerosamente contando-lhe que Polifemo cego ainda perseguia humanos e os comia.

Pensativo, continuou andando devagar e ao longe viu uma senhora alta e esguia, de chapéu curioso com uma bela borboleta amarela.

Com sua sensibilidade a flor da pele percebeu que por onde ela passava deixava um lastro de harmonia e bondade.

Já nos arredores da cidade as imagens eram outras. Um bicharoco estranho com aparência de sapão deformado assustava o gentil. Um filhote à sua semelhança, acompanhava-o mais não nas estripulias.

Ulisses percebeu que ele era um Milolhos de grande sensibilidade que agora estava pervertida. Mas o filhote o Miló, ainda era puro.

Teve então uma idéia intrigante: falaria com o pai para enviá-lo, acompanhado de seu filho à caverna de Polifemo. Este coitado andava sofrendo muitas agruras principalmente em relação à sua comida.

Milolhos teria uma empreitada de paz. Juntar boas comidas e guloseimas levá-las à caverna do gigante, para tentar acalmá-la e propor-lhe passar para Legião do bem.

Polifemo não tinha filhos, mas tinha muitos carneiros gordos aos quais devotava grande zelo, embora fosse para devorá-los.

Mas esse plano concebido por Ulisses era perigoso, e precisaria de uma proteção aos enviados. Hora, mas é claro, essa proteção estava ali ao alcance de sua vista. E lembrou-se da senhora borboleta amarela. Ela poderia proteger essa missão.

Assim pensado; assim feito. Chamou Milolhos, Miló, a bela senhora e contou-lhes seu problema com o ciclope e seu plano para resolvê-lo.

Ele iría junto com eles e seu nome seria ninguém e o nome dos outros não seriam revelados.

No dia seguinte bem cedo, saiu a caravana com destino de cativar o demônio Polifemo.

Lá chegando, ninguém gritou por Polifemo. Ele respondeu lá de dentro:

Se ninguém esta aí fora, vou sair para tomar sol, e deixou presos seus carneiros.

Milolhos agindo em harmonia com Ulisses; a senhora e Miló esconderam os carneiros com magia. Todos conseguiram fugir das situações perigosas e foram fechando o cerco em torno de Polifemo, numa prisão energética. Este, coitado, tinha o olho infeccionado, estava bem mais magro e muito amargo.

Mesmo assim dispôs-se a negociar com os dois líderes quando eles lhe informaram que os carneiros estavam escondidos e só os devolveriam se ele deixasse de comer humanos e fazer maldades, e defenderia homens e animais.

Ele com fome, enfraquecido, sem enxergar, concordou.

Deram-lhe comida; vinho; limparam as feridas e ele dormiu.

A senhora borboleta amarela encarregou-se de apaziguar os campos, os vizinhos, e de garantir aliados pelo lado de fora da caverna. Esta foi limpa, perfumada e todo cheiro do mal desapareceu.

Ulisses, Milolhos, Milô e a senhora borboleta amarela levando a grande mensagem de paz de Ulisses. Este tornou se mais do que herói, transformando-se em um semideus e o povo ficou muito feliz.

O sol grande e amarelo, num céu de cetim, viu essa imagem de felicidade e a senhora borboleta amarela sumir numa névoa.

Cinzas e fumaça

Daniel

Em meio ao silêncio da cidade ainda adormecida, deitado na cama, no lusco fusco das primeiras horas do dia, observava os raios de sol que invadiam o quarto recortados pela persiana da janela. Apanhei a caixa de fósforos e acendi um cigarro. Adoro o som inconfundível de tabaco queimando. A fumaça invadiu meu corpo com uma violência incomum. Os olhos se encheram de fúria, vermelhos e molhados, o pulmão ardeu e a fumaça, acompanhada de um grito ardido, saiu de minha boca como fogo. Formou-se contra a luz uma imagem imponente e assustadora. Pouco a pouco, a fumaça acinzentada, foi delimitando suas formas magníficas. Os olhos grandes e opacos, a cauda gigantesca, um par de chifres pontiagudos e uma boca dantesca e tenebrosa. Um Dragão plúmbeo, feito de fumaça e preenchido com ar. Em um único movimento brusco e elegante, baixou sua cabeça na altura da minha e encarou-me nos olhos, balançou a cauda de um lado para o outro, recuou a cabeça e empertigou-se, numa visão magnífica, como um predador feroz que se prepara para dar o bote. Fiquei imóvel, paralisado pelo medo. Os músculos involuntariamente tremeram, o cigarro que queimava em minha mão caiu no chão, e a cinzas que haviam se formado em sua ponta desprenderam-se, e dali ergueu-se um guerreiro magnífico. Era alto, forte, com armadura, espada e escudo. Um Dom Quixote constituído por tabaco e papel queimado. Empunhou a espada e com agilidade e astúcia lançou-se contra o monstro. Travaram um batalha sem precedentes. O Dragão esbravejava possuído por uma fúria capaz de derrubar exércitos inteiros. Chacoalharam o quarto, destruíram os móveis. O guerreiro, munido de espada e coragem perseguiu incansavelmente a besta que, a cada investida, reagia mais ferozmente. Depois de alguns minutos de intensa batalha, pararam um em cada lado do quarto, divididos pela cama, da onde eu, atônito, acompanhava o combate. Respiraram profundamente e simultaneamente lançaram-se um contra o outro. A espada de cinzas penetrou a barriga do dragão, até sair por suas costas. Aquele ser magnífico foi aos poucos se extinguindo e evaporou-se por completo. O guerreiro, mortalmente cansado desabou dentro do cinzeiro e seus restos mortais misturaram-se com as cinzas da noite anterior.

Poemia

Valéria Faria

s. f.,

Do Imaginarium Poe (poema) + mia (do miar do gato)

Felino de pêlos longos, cauda fofa, focinho para dentro, patas curtas, orelhas delicadas, grandes olhos laranja, pelagem cor de tartaruga. Possui pequenas asas nas costas e sobre a cabeça uma auréola cristalina. Mede 40cm de comprimento, sua altura é de 30cm e pesa 1,7kg. Vive em pequenos mundos inseridos no mundo. Inteligência e perspicácia privilegiadas. Sua audição também é muito apurada. Alimenta-se de pequenas estrelas douradas que nascem no interior de um tipo de maçã colorida muito especial. Por voar, cansa-se, e por se cansar, dorme até vinte horas por dia.

Quando mia, posto que é poema, quebranta a todos os que a ouvem e estes se sentem abençoados. Quando voa move-se de maneira etérea, como uma sílfide, espalhando graça.

Tem o poder de transformar qualquer ambiente árido em um oásis e o de tornar doce até o mais obscuro coração.

Não se sabe bem como ou quando surgiu. Conta-se que, por motivo de desgosto, um poema resolveu findar. Não queria mais ser poema, pensava que o mundo não havia sido feito para abrigar poemas, pois por mais que se esforçasse não conseguia ressoar, nem calar, nem encantar. Nem mesmo fazer parar um pouquinho o tempo para uma tomada de fôlego, a fim de continuar o caminho. Acontece que este poema, já a procura de água para acabar-se num borrão, ouviu ao longe um som simples, sedoso, intenso, repleto de sentimento, que lhe interrompeu o ritmo. Aproximou-se, aproximou-se, aproximou-se e então viu. Era uma gata que miava. Neste momento não pôde evitar e, quase desapontado consigo mesmo pelo que estava para concluir – o que lhe mudaria os planos – quis muito falar com ela, afagar-lhe o pêlo e se deixar conhecer. Chegou-se a ela, mas sabendo se comunicar somente através de palavras escritas, paralizou. A gata se comunicava com o miado, com os olhos, com o corpo todo. O poema ficou intrigado. Ela fez então um único movimento leve, gracioso e certeiro deitando-se com meio corpo sobre o poema, como é feitio dos gatos se deitarem sobre o que estamos lendo. Ficaram ali um tempo, não se sabe ao certo se o resto do dia. Sabe-se apenas que depois de um tempo foi vista a primeira Poemia.

Um encanto para o tempo

Valéria Faria

Poemia (Valéria) + Lobatutatubo (Zezé Bueno)

Havia um pequenino mundo que era um reino em forma de almofadas. Nem ao norte, nem ao sul, distante do leste, ao oposto do oeste, mas bem dentro do nosso mundo. Nele viviam as poemias.

Poemias são felinos de pêlos longos e focinho para dentro. Têm pequenas asas e, sobre a cabeça, uma auréola cintilante. O seu miar é um poema tão doce, que torna doce também até o mais obscuro coração.

A poemia Branca, que tinha acordado cedo, andando ali por perto percebeu algo estranho. Não encontrava ninguém. Não que ela não visse as outras poemias. É que quando se aproximava de uma delas, o suficiente para trocar uma palavrinha, o momento se atrapalhava. Quando via já tinha passado. O minuto do encontro ia embora e não deixava encontrar. E assim outra vez, e mais outra.

Intrigada, voou até a saleta de almofadas carmim, onde descansava seu livro de encantamentos. Pousou bem em frente a ele e o abriu de repente, sem muito medir, como deveria mesmo ser.

O que viu quase a fez perder os sentidos. Montões e montões de ponteiros, números dourados e pequenas engrenagens de relógios formavam um desmedido labirinto. Por ele andava um grande e velho relógio de corda perdido, perdido.

Branca fechou o livro rapidamente, certa do que deveria ser feito. Forrou o chão da saleta com açúcar e chamou a pequena poemia Fada.

Ela veio, tão pequenina, pisando sobre o açúcar. Fitou Branca com seus olhos âmbar e perguntou com voz de poema o que ela desejava.

Branca, então, lhe contou o que havia visto no livro de encantos: o Tempo estava perdido. Minutos trapaceavam horas, dias voavam em disparada enquanto segundos não passavam nunca.

Pessoas que haviam vivido anos e anos acordavam pensando que não haviam vivido tempo nenhum. Não havia mais encontro, despedida não havia não; não havia um passo depois do outro, nem beijo depois de pedida a mão. O tempo descompassava.

A poemiazinha, brincando de desenhar no açúcar, perguntou o que poderia fazer.

Branca docemente lhe explicou que contra os problemas com o tempo só mesmo um coração de criança, que não se preocupava com o seu passar, nem com o que já havia passado, nem com o que estava por vir. Coisa de criança é acreditar na imunidade contra o tempo.

Fadinha, gaguejando um pouco, perguntou se ela era esse alguém.

Branca fez com a cabeça que sim. Sabia bem o que se passava em sua imaginação. Ela mesma, certa vez, já havia cumprido uma grande tarefa para o seu tamanho. Reaproximou cada pessoa de seu eixo para neutralizar um horrível sentimento que havia tomado conta de todos: sentiam que não eram mais eles mesmos. Branca saiu-se muito bem. Agora era a vez de Fadinha.

Estava na essência das poemias o reverter desencontros. Conta-se que elas surgiram do encontro de um poema desiludido com uma gata encantadora. Essa era a essência de Branca, assim como a de Fadinha.

A poemia infante, já num entusiasmo quase imprudente, chacoalhou as asinhas, ajeitou sua auréola cintilante e dispôs-se. Branca orgulhou-se da pequenina e afetuosamente a despediu:

Voa e leva pelo infinito céu

Seu doce encanto para encontrar

Quem em secreto tece fios mágicos

E no escuro trabalha para fazer brilhar.

A poemiazinha saiu cheia de si, como quem acaba de ser nomeado cavaleiro. Seguiu levando apenas o seu farnel, que eram algumas estrelas douradas da maçã colorida daquela manhã.

Voou alto para o infinito céu, assim como sua benção de despedida recomendava. O firmamento era de um azul sem fim. Batia as asinhas ligeiro, pois eram muito pequeninas.

De repente, começou a sentir cheiro de terra, meio cheiro de barro. Olhou para suas patinhas da frente e elas estavam sujas de terra, marronzinhas. Seus pezinhos também. Opa! Terra pelo corpo, pelo corpo todo.

Agora tudo havia ficado escuro. Tentou esfregar os olhos, mas não podia alcançá-los. Suas patas estavam esticadas: as da frente para frente, as de trás para trás. Barriguinha encostada no chão e costas tocando o teto.

Era um buraco, um túnel apertado. Mas no céu? Rastejou um pouquinho, foi tentando se mexer e puxar para si sua bolsinha.

Nesse puxar e puxar caiu da bolsa um pequeno papel. Era um bilhete. Teve que esperar seus olhos acostumarem um pouco mais com a escuridão para poder lê-lo. Enquanto isso, tirou uma estrela da bolsa e comeu. Finalmente pôde ler:

Emendou as pontas

Os contrários conseguiu juntar

Se céu e barro se encontraram

Não há nada que não possa se encontrar.

Achou aquilo muito estranho e também sem explicação. Mas estava mesmo num buraco e o jeito foi continuar rastejando.

Depois de uma curva, topou com uma minhoca engraçada que mastigava um capinzinho no canto da boca, encostada em um barranco. Perguntou se ela conhecia alguém que, em segredo, tecia fios mágicos.

A minhoca deu um bocejo e disse que não sabia não, mas que um primo do vizinho do amigo de um percevejo muito bem relacionado por aquelas bandas até poderia conhecer.

Infelizmente, ele estava visitando a família no norte e só iria voltar dali a uma semana.

Fadinha, meio confusa, agradeceu e continuou o caminho.

Rastejou por túneis intermináveis, bifurcações decididas a olho, confiada apenas no “não há nada que não possa se encontrar”.

Viu de longe algo lá na frente e, animando-se, tentou acelerar.

Era um besouro que quando a avistou já começou a cantar com voz de tenor, como um trovão, perguntando o que uma criatura tão cintilante como aquela fazia naquele buraco. A pequena Fada respondeu, um tanto trêmula, que procurava alguém que trabalhava no escuro para fazer brilhar.

O besourão disse que seria difícil achar brilho por aquelas redondezas. Só se fosse o brilho da baba da lesma.

Fadinha achou que não era esse o caso. Sacudiu sua bolsinha em busca de um outro bilhete, mas nada. Despediu-se e continuou a caminhada.

Por ali, o túnel começava a ficar mais espaçoso. Poderia finalmente andar sem rastejar, mas não sem antes dar uma boa espreguiçada e tomar um banho.

Caminhada avançada, avistou uma formiga.

Estava rodeada de pilhas de papéis e livros antigos. Arrumava, ordenava, catalogava e não parava.

Quando percebeu a visita, olhou por cima dos óculos e perguntou com uma voz fininha no que poderia ser útil.

Fada quis saber se ela conhecia alguém que estava preparando um encanto, tecendo fios mágicos em secreto e trabalhando no escuro para fazer brilhar.

Rapidamente, a formiga saltou da pedrinha na qual estava sentada, subiu pelos papéis, fuçou, fuçou e desceu com um velho livro empoeirado já o espanando com as patas.

Muito entusiasmada, procurou entre as páginas um desenho, o desenho de um mapa.

Quando achou, deu um grito fino de satisfação que fez Fadinha fechar os olhos de irritação.

Mas valeu à pena. A formiga lhe mostrou um mapa indicando que, não muito longe dali, havia um lugar onde a terra era morna, muito, muito agradável e silenciosa. Ali poderia estar descansando quem tivesse um feitiço para preparar.

Fadinha mal acreditou. Deu-lhe uma estrela de sua maçã e um belo sorriso de agradecimento. Saiu com muita pressa e rumo certo.

Virou aqui, virou ali, seguiu em frente, deu uma volta na pedra, quase lá, quase lá.

Começou a sentir o calorzinho da terra e foi chegando cada vez mais. Era ali tudo muito calmo e silencioso. Ouvia o seu coração bater forte.

Viu uma bolinha enrolada num tipo de ninho de terra e sentiu uma paz daquelas de suspirar.

Achegou-se, sentou e esperou. Comeu uma estrela. Sacudiu a bolsinha para talvez receber um conselho, mas nada.

De repente Fada ouviu um barulhinho de mola: o bichinho começou a se esticar.

Fixou o olhar nele para não perder a oportunidade de lhe falar. Mais espreguiços, mais barulhos de mola, mais estica, mais enrola.

Um bichinho tipo uma minhoca articulada, de muitas pernas como cílios, virou e olhou calmamente para a poemia que o encarava esperando algo.

Um tanto afoita, quis logo saber se ele tinha o encantamento para ela.

Em velocidade matinal, primeiro se apresentou dizendo que seu nome era Labatutatubo.

Fadinha tentou pronunciá-lo umas três vezes. Não conseguiu e achou melhor parar para não dar a entender que o tal nome fosse muito complicado.

Labatutatubo desceu do ninho e, andando com seu corpinho articulado, bendisse a pouca luz do lugar, o que o ajudava a olhar a poemia olho no olho, sem se incomodar com aquele âmbar profundo. Era avesso a coloridos ou coisas agigantadas.

Fadinha lhe perguntou se ele precisava de ajuda. Lobatutatubo lhe disse que quase tudo estava feito. Ela havia chegado bem na hora de fazer sua parte.

Há pouco, o mundo havia se deixado levar pelo desaviso de uma ciranda sem rumo. Tudo se desencaixava e os espaços foram ocupados com coisas, compromissos, agendas.

Não havia mais tempo para o encontro. Para encontrar há que se ter tempo.

Como era do costume de Lobatutatubo, quando as coisas se aglomeravam, ele se recolhia em contato com a natureza, quietinho, para se refazer. Tecia harmonia com fios mágicos e reencontrava dentro de si coisas perenes e eternas.

Mas desta vez a tarefa havia sido maior. Foi preciso um refazer pelas pessoas.

Esteve naquele ninho, na reclusão necessária para o trabalho, durante tanto tempo que não se lembrava mais da saída. Precisava de ajuda para sair.

Ele estava esperando pela poemia. Sabia que ela, criança, poderia encontrá-lo sem nem mesmo saber direito sobre todas essas coisas.

Fada olhou-o encantada e sentiu profundamente que, naquele momento, as coisas haviam voltado para os seus lugares.

Sabia que, bem naquele instante, Branca estava no reino de almofadas, sentada com as outras poemias trocando risadas e sonhos.

O Tempo havia saído daquele terrível labirinto mecânico. Estava livre para passar como desejava.

De coração apaziguado, voltou à superfície junto a Lobatutatubo, compartilhando um pouco de si mesma e também tomando parte do encanto que aquele bichinho-parafuso-articulado tinha a lhe oferecer.

Sem pressa no voltar, com tempo, porque mesmo sendo criança percebeu que o tempo existe e que a vida é feita dele.